quarta-feira, agosto 21, 2019

Caso de Tapacurá norteia estudo sobre processo de construção e de propagação de boatos alarmistas

Tumulto criado por boato de que barragem teria estourado, durante a cheia de 1975, provocou três mortes por ataque cardíaco, dezenas de pessoas ficaram feridas e com crise nervosa, atendidas em hospitais públicos e particulares no Recife. 

Na dissertação “Os boatos alarmistas na perspectiva da Ciência da Informação: o caso 'Tapacurá estourou'”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFPE (PPGCI), Manoel Oswaldo Guimarães Junior analisa o processo de construção e propagação dessa natureza de informação, com foco em como o “ouvi dizer” faz parte da história da comunicação e da informação populares. A pesquisa destaca a influência da memória e da cultura da sociedade pernambucana como elementos criadores de uma falsa explicação para uma situação caracterizada pelo medo, pela incerteza e pela ausência e falhas na transmissão de informações oficiais por parte dos órgãos governamentais e de imprensa.

Orientado pela professora Májory Karoline Fernandes de Oliveira, o autor apresentou o boato como um fenômeno infocomunicacional, fazendo uso do Método Quadripolar, um tipo de metodologia que proporciona uma investigação mais dinâmica e um intercâmbio interdisciplinar, formado pelos polos epistemológico, teórico, técnico e morfológico. Para retratar o boato mais famoso do Recife, ocorrido no dia 21 de julho de 1975, além de um vasto material bibliográfico de referência, o pesquisador utilizou também materiais jornalísticos e governamentais da época. Segundo a dissertação, que trata o boato como algo social, uma informação de interesse público, mas sendo comunicada de maneira informal, boca a boca, “o estado de excitação geral baixa o senso crítico e predispõe à ilusão”.

Foi na busca por algo que unisse a área de Comunicação com a da Informação que o autor chegou ao tema “Tapacurá estourou!”, alerta repassado de boca em boca, difundido como se fosse verdade, provocando histeria e pânico coletivo na sociedade recifense por quase uma hora. Por entender que os boatos estão inseridos nessas duas áreas, Manoel acredita que é muito difícil encontrar uma pessoa que ainda não tenha se envolvido ou se influenciado por fenômeno dessa natureza. “Por isso, é fácil encontrar estudos sobre o assunto na Sociologia, na Psicologia e na própria Comunicação; mas faltava o olhar da Ciência da Informação, uma vez que havia uma lacuna desta área sobre os boatos”, analisa. O pesquisador relata ter uma relação de proximidade com o objeto de estudo, uma vez que o episódio acerca da propagação da notícia falsa ocorreu um ano antes do seu nascimento. “Desde criança escuto da minha mãe e dos meus parentes sobre esse tragicômico episódio. Quando decidi realizar a pesquisa sobre boatos na perspectiva da Ciência da Informação, não titubeei em escolher Tapacurá, pois entendia que se adequava perfeitamente aos objetivos de um estudo de caso”, afirma.

“O conhecimento que se tem hoje a respeito dos boatos é fruto de significativos trabalhos realizados em vários campos científicos”, explica Manoel. Para traçar um paralelo, o estudo relembra que, após uma sequência de terremotos que devastaram várias províncias na Índia em 1934, o pesquisador Jamuna Prasad (1935) analisou uma série de boatos que circularam durante o período e associou os mesmos aos contextos coletivos de perigo, interpretando a sua natureza e propagação como a resposta dos grupos sociais a um momento emocional e irracional às condições coletivas que enfrentavam. Para o pesquisador, o tipo de situação que favorece o surgimento de boatos alarmantes contém as seguintes características: causar distúrbio emocional, ser uma informação incomum, ser de total desconhecimento da pessoa afetada, conter muitos detalhes não verificáveis e ser de interesse do grupo.

FAKE

Apesar de muita gente achar que são a mesma coisa, considerando até mesmo termos sinônimos, há uma significativa diferença entre boatos e fake news, como explica Manoel: “O primeiro é um fenômeno muito mais trabalhado, construído no interior de um determinado contexto (social, cultural, empresarial, profissional etc) para tentar explicar determinada situação ou acontecimento. Já as fake news, como o próprio nome indica, são notícias falsas criadas nas redes sociais de forma instantânea, na maioria das vezes sem nenhum antecedente plausível que explique sua criação”.

Segundo o autor, o boato caracteriza-se como um fenômeno social que também pode ser construído e agravado pelas condições psicológicas de um determinado grupo. Quando o ser humano age movido pela emoção, sem nenhum critério racional, tem grandes chances de cometer erros, bobagens e, até mesmo, coisas absurdas. “Muitas empresas já faliram, muitas carreiras profissionais já se acabaram, muitos bons políticos já perderam eleições, muitas reputações foram jogadas no lixo, muitos desastres, violências e mortes já ocorreram, por conta de boatos. E quando percebemos essa 'devastação' que um boato pode causar, começamos a valorizar mais o conhecimento, a boa informação e a boa comunicação. Claro, esses fatores não irão acabar com boatos e fake news. Mas, com toda a certeza, podem evitar o surgimento de muitos em nossa sociedade”, analisa.

Quando o Recife flertou com o caos

Por volta das 10 horas do dia 21 de julho de 1975, teve início a propagação, no Recife, da informação de que a barragem de Tapacurá, construída dois anos antes e cujo reservatório tinha capacidade máxima de 94,2 milhões de m³ para abastecer a porção sul da Região Metropolitana de Recife (RMR), havia estourado, e que a capital pernambucana seria destruída pelas águas em poucas horas. “Tapacurá estourou!” era a informação replicada por todos, provocando histeria e pânico em toda a cidade.

Durante cerca de uma hora, a população recifense ficou apavorada, correndo de um lado para outro sem saber para onde ir. Mulheres desmaiavam; carros não respeitaram sinais e trafegaram em alta velocidade na contramão; guardas de trânsito abandonaram seus postos, provocando acidentes e atropelamentos. Os ônibus foram invadidos fora das paradas por aflitos passageiros, ao mesmo tempo em que outros, apavorados, saltaram pelas janelas. Bancos, comércios e repartições públicas fecharam as portas. Até doentes internados em hospitais abandonaram ambulatórios e enfermarias. Sem dúvida, um verdadeiro caos. Ainda traumatizada pela força da grande enchente ocorrida dois dias antes, a população entrou em desespero devido à possibilidade imaginária de ser aniquilada pelas águas.

Somente após insistentes boletins das emissoras de rádio e televisão, alguns da própria voz do governador do Estado, desmentindo categoricamente o boato, a vida da cidade foi aos poucos se reordenando. A Polícia Militar também divulgou nota oficial informando que prenderia quem fosse flagrado repetindo o boato. O tumulto provocou três mortes por ataque cardíaco, dezenas de pessoas ficaram feridas e com crise nervosa, atendidas em hospitais públicos e particulares. “Esse histórico relacionado às enchentes em Pernambuco à época e o contexto social do boato de Tapacurá, além a influência da memória e da cultura, problemas na informação e na comunicação, tudo isso construiu o terreno fértil para o boato mais famoso do Recife”, afirma Manoel Guimarães Júnior.

Diário de Pernambuco

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