segunda-feira, março 20, 2017

Transposição do São Francisco ameaça terras indígenas em Pernambuco

Povos Truká e Pipipan sofrem impactos das obras e temem ver terras alagadas antes de demarcação oficial

A reportagem é de Renata Bessi, publicada por Repórter Brasil, 14-03-2017.

Cabrobró (PE) e Floresta (PE) - Fincados na caatinga do semiárido pernambucano, em terras secas por onde andou o cangaceiro Lampião, estão os povos indígenas Truká e Pipipan. Vivem nas proximidades do Rio São Francisco, respectivamente nas cidades de Cabrobó e Floresta, distantes 94 quilômetros uma da outra e a cerca de 600 quilômetros da capital Recife. Não faltam a eles características em comum. Habitam terras herdeiras da violência do cangaço, vivem a pior seca dos últimos 50 anos, viram seu chão sendo submerso pela represa de Itaparica em fins da década de 1980, estão no chamado polígono da maconha com inúmeros conflitos agrários, e são vizinhos de Itacuruba, cidade para a qual o governo federal guarda projeto de construção de uma usina nuclear.
Meninas do povo Pipipan

Em comum possuem também a ameaça à demarcação de suas terras, principal bandeira de reivindicação dos indígenas, pelas obras da transposição do São Francisco, uma das maiores obras de infraestrutura do governo federal. As duas tomadas de águas do rio, que serão levadas por dois canais sertão adentro, estão sendo construídas em territórios reivindicados pelos Truká e Pipipan em Cabrobó e Floresta.

Por um mês, a reportagem percorreu terras do sertão de Pernambuco e apurou questões enfrentadas por esses povos, como o conflito de terras e pela água, grileiros, desmatamento, problemas agravados com as obras da transposição.

Terras sagradas: A relação dos povos indígenas com as terras, florestas e águas do vale do Rio São Francisco

Os Truká e parte do povo Pipipan foram atingidos diretamente pela barragem de Itaparica, construída em 1989, cujas águas do São Francisco alagaram cidades inteiras como Petrolândia e Itacuruba para produção de energia elétrica.

Com as mudanças no fluxo da água, controlada pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) prioritariamente para a geração de energia, o modo de plantio do povo Truká, relata estudos etnoecológicos feitos pela Funai em 2005, teve de ser readaptado. O plantio era feito “de vazante”, ou seja, nas épocas em que o rio baixava, deixando a terra fértil e rica em matéria orgânica. Todos sabiam quais as épocas do ano em que deveria ser colocada a roça com diversas espécies: feijão, mandioca, milho, cebola, batata, cana-de-açúcar. Esse era o “tempo da natureza”, no qual os índios podiam programar seu trabalho e esperar resultados. Atualmente, as águas do rio dependem do “tempo dos homens” e é extremamente difícil para os índios plantar nas vazantes, pois não existe previsão de quando as águas vão baixar. Com a perda quase total do plantio de vazantes, os índios são obrigados a plantar “de molhação”, ou seja, com sistemas de irrigação. Essa forma de plantio requer investimentos financeiros que nem sempre estão disponíveis para as famílias.

Em relação aos Pipipan, parte do povo viu suas terras e lugares sagrados serem inundados e hoje muitos deles vivem nas chamadas agrovilas, como a Agrovila 6, em Floresta, construídas para receber os desalojados.

Menos de 25 anos depois, uma das maiores obras de infraestrutura em curso no país pelo governo federal, a transposição do Rio São Francisco, impacta mais uma vez a soberania territorial desses povos. As duas tomadas de água — pontos de captação das águas do rio São Francisco — e o seu sistema de bombeamento, que alimentarão os dois canais da transposição que passarão por 268 municípios, estão nos territórios reivindicados pelos Truká — canal do Eixo Norte, em Cabrobó — e pelos Pipipan — canal do Eixo Leste, em Floresta.

O ponto de captação de água do rio São Francisco do Eixo Norte do projeto se localiza a menos de 80 metros da Ilha de Assunção, na divisa entre Bahia e Pernambuco, terra indígena Truká já demarcada, e atravessa seu território ainda em processo de demarcação. A água será levada por um canal a 402 quilômetros de distância para os rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN) e Piranhas (PB). A barragem de Pedra Branca, que será feita justamente na tomada d’água em Cabrobó, implicará a inundação de parte do território reivindicado pelo povo Truká.

Já no Eixo Leste, a tomada d’água está dentro do território reivindicado pelos Pipipan. A água será retirada do lago da barragem de Itaparica, na divisa entre Petrolândia e Floresta, e será levada por um canal de 220 quilômetros de extensão até o rio Paraíba (PB).

Ao todo, além dos cerca de 600 quilômetros de canal, estão sendo construídos duas barragens hidrelétricas, a de Pedra Branca e a de Riacho Seco, 9 estações de bombeamento, 27 aquedutos, 8 túneis e 35 reservatórios.

Este texto é parte da reportagem Transposição do São Francisco ameaça terras indígenas
Por Renata Bessi, especial para a Repórter Brasil

Clique nos links abaixo para navegar por esta reportagem especial.

Terras sagradas
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Repórter Brasil

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