quinta-feira, outubro 23, 2014

A mirada de João Zinclar para o ‘Territó-Rio’ São Francisco, artigo de Flávio José Rocha da Silva

João Zinclar (1957-2013), natural de Rio Grande (RS), foi metalúrgico e sindicalista e por isso se considerava um operário da fotografia. Nos últimos anos de sua vida dedicou-se a fotografar o rio São Francisco, os povos que habitam as suas margens e as paisagens sertanejas.

Flávio José Rocha da Silva é doutorando em Ciências Sociais na PUC-SP e bolsista CNPq.

O singular não combina com o livro O rio São Francisco e as águas no sertão (Sivamarts Gráfica e Editora, 2010), de autoria do fotógrafo João Zinclar. São 191 fotografias com imagens registradas entre janeiro de 2005 e junho de 2010, durante os mais de 10 mil quilômetros percorridos pelo fotógrafo em oito Estados brasileiros pela região das águas sanfranciscanas e outras áreas do Semiárido nordestino.

As fotografias de Zinclar gritam a morte do Velho Chico ao mesmo tempo em que declamam a sua beleza. Denunciam o descaso com aquele manancial e anunciam as promessas para a sua revitalização capitaneada pelos movimentos sociais daquela região. Delatam os que dele sugam todas as energias para as múltiplas atividades econômicas que lá ocorrem e rendem homenagens àqueles e aquelas que, em comunhão com o Velho Chico por entenderem a imbricação vital entre um rio saudável e um povo ribeirinho feliz, lutam na defesa de sua preservação. Para Siqueira (2010, p. 21), o “Aprendizado fundamental desta viagem fotográfica é que o olhar que fotografa e por extensão o que vê a foto, implica em uma postura que para além da fruição artística, é atitude política, assumidamente.” E essa atitude tem, com certeza, relação com o passado de engajamento com sindicatos e partidos de esquerda do fotógrafo.

Zinclar enxergava a luta dos povos ribeirinhos como uma outra vertente da luta de classes, como ele mesmo explica em uma entrevista para o jornal Brasil de Fato em 2010. Para ele, “À sua maneira, esse povo contribui na linha de frente no conflito com o capital, resistindo e procurando construir alternativas à nova fase do avanço do agronegócio no campo e do capitalismo no Brasil.”

A singularidade das fotos de Zinclar está em que ele é um fotógrafo participante do evento que registra. Ele está dentro e fora do acontecimento clicado por sua câmera ao mesmo tempo. Essa participação, também ela uma atitude política, o levou a imbricar-se junto aos movimentos sociais contrários ao modelo de desenvolvimento que privilegia o agronegócio na bacia do Velho Chico e registrar as manifestações de protesto destes movimentos. Foi essa a opção do seu olhar no enquadramento das imagens que capturou.

Um outro aspecto do livro são os números textos escritos por vários autores e que acompanham as fotografias, assim realçando as intenções das fotos de Zinclar. Os textos tem a intenção de reforçar a sua intenção em denunciar todas as mazelas impostas ao rio São Francisco.

Zinclar era um apaixonado pelo Velho Chico e tudo que dele emergisse, principalmente a relação entre este rio e os seres humanos que com ele convivem no cotidiano. Esse ato cúmplice entre Zinclar, as populações ribeirinhas e o rio, vai além do registro da paisagem desabitada por humanos ao ressaltar a beleza natural daquela região do país, já fotografada inúmeras vezes. Das 191 fotos, 123 delas tem pessoas presentes das mais diferentes formas: em atividades econômicas, contemplação, rituais religiosos e espirituais, lazer e, por fim, protestos contra o gradual processo de degradação do rio.

A potência do livro O rio São Francisco e as águas do sertão está em retratar não apenas a magnanimidade do rio, mas as relações de suas correntes com os milhões de ribeirinhos que vivem em suas margens e fazer das imagens daqueles povos, com seus saberes, brincadeiras, rituais, religiosidade e lutas, uma nova maneira de perceber/olhar/registrar os conflitos de poder em um área que passa por grandes transformações de ordem econômica com a chegada das grandes mineradores e os campos de irrigação do agronegócio. Além disso, o livro também busca retratar as águas do sertão nordestino em áreas distantes do rio São Francisco, numa tentativa de quebrar uma centenária visão do sertão como um lugar sem recursos hídricos. Uma busca por fugir do lugar-comum do registro fotográfico do chão rachado e das figuras humanas famélicas que acabou marcando o imaginário coletivo brasileiro sobre aquela área.

Qualquer fotógrafo traz consigo sua carga intelectual e suas intenções, algo que é nítido na obra de Zinclar com o seu histórico de engajamento com o movimento sindical no Estado de São Paulo e com os movimentos sociais da região Nordeste nos últimos anos de sua vida. Não há como negar que poucos fotógrafos tiveram o nível de intimidade e confiança que ele conseguiu ao longo de anos de convivência com as populações ribeirinhas do Velho Chico para registrar as suas imagens, o que lhe permitiu acesso a lugares, pessoas, ritos, etc. que bem poucos “de fora” tiveram. E é essa localização privilegiada que tonifica as suas imagens e que seduzem os que as veem por revelar os protagonistas por ele escolhidos para compô-las.

Zinclar também registra vários dos povos indígenas do rio São Francisco no seu cotidiano e na luta pela demarcação de suas terras ou ainda em protestos contra o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco – PTARSF. Assim, desde o início de sua empreitada de cinco anos, Zinclar teve o posicionamento de sua câmera direcionado contra esta obra.

Suas fotografias vão direto ao ponto: 1. O Rio São Francisco está morrendo vítima de um modelo de desenvolvimento baseado no agronegócio. 2. Grandes empresas estão lucrando e não as preocupa a morte do rio ou os prejuízos deixados aos povos ribeirinhos. 3. Há conivência dos poderes governamentais com a morte do rio. Suas fotos tem um endereço e querem comunicar uma posição política com relação ao modelo de desenvolvimento imposto aos povos ribeirinhos. Elas também querem desfazer mitos com relação a falta de água no Semiárido nordestino quando retratam as várias barragens, grandes açudes e paisagens verdes daquela região.

São incontáveis os mitos, as canções, as poesias e as histórias criados para homenagear o Rio São Francisco por partes das populações ribeirinhas que habitam aquele território. Prova da relação estreita desenvolvida pelo reconhecimento de sua importância vital para aquele povo. O livro O rio São Francisco e as águas do sertãovem somar-se a leva de homenagens a este rio crucial para a vida de milhões de brasileiros.

Zinclar legou um trabalho para a posteridade, pois, segundo Kossoy, (2005, p.43), “As fotografias, em geral, sobrevivem após o desaparecimento físico do referente que as originou: são elos documentais e afetivos que perpetuam a memória.” Assim, este livro perpetuar-se-á como um instrumento de resistência para as futuras gerações dos povos ribeirinhos compreenderem os processos de degradação do Velho Chico e as várias formas de luta empreendidas pelos moradores atuais para preservá-lo. Ele certamente contribui para os do presente compreenderem o passado e para os do futuro não repetirem os mesmos erros do presente.

Bibliografia
KOSSOY, Boris, Fotografia e memória: reconstituição por meio da fotografia. In: SAMAIN: Etienne (Org.). O Fotográfico. Editora Hucitec; Editora Senac: São Paulo. 2005..
SIQUEIRA, Ruben. Tramas da imagem, percurso de um Rio-Povo. In: ZINCLAR, João. O rio São Francisco e as águas do sertão. Sivamarts Gráfica e Editora: Campinas. 2010.
ZINCLAR, João. O rio São Francisco e as águas do sertão. Sivamarts Gráfica e Editora: Campinas. 2010.
______. Luta pela água: um conflito de classes. In: ZINCLAR, João. O rio São Francisco e as águas do sertão. Sivamarts Gráfica e Editora: Campinas. 2010.
______. Livro fotográfico registra a luta em defesa do Velho Chico. Jornal Brasil de Fato. 2010. Confira em http://www.brasildefato.com.br/node/4572 . Acessado em 19/06/2014.

“Mudar o mundo eu acho que é uma tarefa muito maior do que a fotografia. Mudar o mundo é ter milhões de pessoas na rua em movimentos contra os opressores, contra as ditaduras, é isso que muda o mundo. E a fotografia, se ela quiser cumprir esse papel, tem que andar pari passu com esses movimentos, colocando realidades objetivas e subjetivas, porque não existe verdade absoluta.”
(João Zinclar, em “Caçadores de Alma”, de Silvio Tendler: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=ydBFjU8EPW4).

Fonte: Portal EcoDebate

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