terça-feira, abril 22, 2014

Caso Bernardo Boldrini: dissociação do legalismo e do conservadorismo no Direito de Família


Uma das histórias mais lamentáveis que acompanhamos nos últimos tempos envolvendo conceitos de família e direitos de uma criança, nos desafia convicções religiosas e também jurídicas. O menino Bernardo, cuja reportagem tem sido amplamente reproduzida em mídia nacional leva a algumas reflexões como jurista, como pessoa e cristão, como passo a comentar.

Já disse em publicação anterior que a realidade das famílias atuais tem demonstrado perda de valores familiares, religiosos no que pudemos assistir ao pedido de socorro e as súplicas não atendidas de uma criança, que incrivelmente à exceção de qualquer situação já presenciada em direito de família, aos seus 11 (onze) anos, procurou por sua própria iniciativa o fórum local para comunicar sua vontade em ter mais afeto em seu lar, chegando a impor condições para que retornasse, nada mais do que a aproximação de seus pais e de sua própria irmã paterna.

Ve-se portanto, uma dita exceção, um sinal para nós aplicadores do direito de que, o legalismo e o conservadorismo em direito de família jamais serão bem-vindos, é necessário um juízo único de sensibilidade que foge à mera aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente em seus preceitos de valorização dos vínculos biológicos paternais, sem sequer sopesar a possibilidade de uma tragédia como a ocorrida.

Não é possível que se mantenha uma criança sob a guarda e cuidados dos pais que sequer têm esta mesma vontade, ao contrário disto, uma criança que, já em pouca idade tinha grande círculo social e de amizades que zelavam por si como se família fossem, foi obrigado a ver-se aproximado de uma família que não o queria, talvez pelo fato de que fora constituída nova família sem que se pretendesse manter vínculos com uma conturbada história de relacionamento familiar anterior, lamentáveis atitudes.

Sem fugir ao objetivo deste singelo artigo, não se pretende analisar pontualmente o caso em questão, ainda em fase investigativa, mas tão somente se pretende demonstrar a falta de atitudes jurídicas eficazes a ponto de não deixar que chegasse a um crime hediondo e evitável.

O legalismo, sem sentido filosófico aqui definido, coloca regras estabelecidas, no caso pelo Estatuto da Criança e Adolescente, sobre as próprias vontades humanas, externadas pela criança quem procurou auxílio de toda sociedade e do próprio judiciário, comunicando uma triste situação de crise familiar e falta de afetividade, palavra essencial para definir sobre a integridade emocional, física e psicológica de uma criança.

Assim também o conservadorismo estabelece as leis sobre tradições contrapostas à mudanças culturais, como dito, na flexibilidade e sensibilidade do direito de família, que exige juízo de valor único e diferente das demais situações existentes.

A premissa constitucional de máxima preservação da comunidade familiar em que se integram os menores, tratada pelo art. 227 como não só um dever da família, mas “da sociedade e do Estado assegurar à criança, [...] com absoluta prioridade, o direito à vida, [...] convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, merece ser eternamente lembrado à toda sociedade pela lição de vida deixada por Bernardo, quem mostrou sermos insensíveis e técnicos na aplicação deste direito.

De igual maneira descreveu o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, com maior ênfase na primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.


Para não desprestigiar por completo a legislação existente, dizendo ser conservadora por um todo, não por outro motivo, o art. 6º do ECA, sinaliza a necessidade de levar em conta “os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”

Portanto, há uma forte mensagem deixada a todos os profissionais do direito, para que atuem de forma moderada, sensível, flexível e desprendida de caráter técnico legalista ao apreciar individualmente e especialmente cada caso envolvendo crianças e adolescentes em crise familiar, reestruturações familiares e a vontade humana de cada um dos protagonistas de cuidar uns dos outros, sopesando, para tanto, seus princípios familiares, suas convicções religiosas e seus valores pessoais.

Cumpra-se com rigor, valendo-se a TODOS os cidadãos, o que constitucionalmente e principalmente o Estatuto da Criança e do Adolescente determina ser “dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (art. 70, ECA).

Como católico e cristão convicto na preservação de valores fraternais, venerando o amor ao próximo, na enorme preocupação de estar sempre atuando de forma justa, sensata e sensível à realidade jurídica melhor aplicada, ressalto novamente, a mensagem deixada por uma criança que certamente veio ao mundo com esta missão, de mostrar nossas falhas, para que possamos perceber situações emergentes e tão graves colocadas diante de nossos próprios olhos.

Fonte: JusBrasil
Autor: Pedro Puttini Mendes - Advogado, membro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família

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