sexta-feira, julho 20, 2018

“Virei uma página”: Casagrande narra como ficou um mês sem beber e sem se drogar na Rússia


Faço tratamento para dependência química há dez anos. Um tratamento muito complicado, porque ele não termina. A gente sempre acha que está bom, e de repente acontece alguma coisa que te mostra que você está longe. A minha rotina não é fácil. Segunda é o dia que eu vou para a terapia em grupo. Eu tenho que fazer a minha programação da semana e contar como foi meu fim de semana. Nos outros dias, eu só vou se quiser. E eu vou todos os dias em que não tenho trabalho para fazer. Vou as terças, quintas e sextas. Saio com minhas psicólogas para jantar, vou com elas ao cinema na quinta, mas deixo tudo programado por escrito para me controlar.

Na Copa de 2014, eu ainda bebia. Fiquei fazendo happy hour, bebendo. Não usava mais droga, mas o álcool estava presente, e com o álcool vinha aquele pensamento de usar a droga. Me internei por sete meses, de setembro de 2015 a março de 2016. Não de ficar totalmente preso. Eu saía para fazer as transmissões dos jogos, saía para ir ao cinema, mas sempre acompanhado da minha psicóloga. Saía para ir ao teatro, me divertir, mas ia e voltava com a psicóloga. Fiquei sete meses dormindo na clínica, participando de grupos terapêuticos.

Saí da internação na clínica em março daquele ano de 2016 e fui cobrir a Olimpíada aqui no Brasil. Fiz a Olimpíada legal, tranquilo, sem problema algum, até porque não saía do hotel a não ser para fazer os jogos. Só saía para o que precisava. Naquela época conheci a Baby [do Brasil], inclusive, e nós saímos para jantar todos os dias lá na última semana da Olimpíada. Todo dia. Ela ficou numa de me cuidar mesmo, de me ajudar. Nós não estávamos namorando. Eu tinha tido contato com ela por pouco tempo. Foi realmente coisa de amigos.

No último dia, de encerramento da Olimpíada, eu tinha dois ingressos para assistir à final entre Brasil e Alemanha. Avisei minha psicóloga, ela foi para o Rio, e nós fomos eu, minha psicóloga e a Baby. Me toquei ali que tinha sido o primeiro evento que eu tinha passado sóbrio. Foi na Olimpíada de 2016. Mas ela foi no Brasil, então eu tinha recursos de psicólogos, amigos, tinha toda ajuda. Eu precisava de um evento grande, uma Copa do Mundo fora do Brasil, para que eu mesmo tivesse de resolver as coisas. Aí, sim, eu ia me sentir num patamar mais evoluído.

Assim me preparei para a Copa na Rússia. No último dia, no embarque para o exterior, falei para mim mesmo: estou indo para a Copa do Mundo para chegar sóbrio, ficar sóbrio e voltar sóbrio. E aí eu fui. Só que nós fomos primeiro para Liverpool. A Seleção Brasileira estava lá para se preparar para a Copa e fazer um amistoso contra a Croácia. Passamos a noite lá, e havia uma energia de rock and roll muito grande. Liverpool para mim, que sou apaixonado por rock and roll desde a minha juventude, é uma cidade muito empolgante.

Entrei no beco do The Cavern Club, e tinha uma festa. Todo mundo bebendo cerveja, o rock and roll tocando alto. Chegamos na porta, eu tirei uma foto da estátua do John Lennon ali, e aí todo mundo ficou com aquele “vamos entrar”, “vamos entrar”. Eu fiquei parado de frente para aquele letreiro com luzes vermelhas fazendo uma avaliação dos prós e contras de entrar ou não. Foi muito difícil para eu não entrar no The Cavern Club. Era meu sonho. Eu estava ali, na casa do rock and roll, no berço dos Beatles, e não vou entrar? Por que não vou entrar?

Comecei a pensar nos porquês. Não entrei. Fui para o hotel, pô, trêmulo por causa daquela energia. Cheguei no quarto, me troquei e deitei para dormir. Pensei em me trocar e voltar para ao The Cavern Club. Nesse meio tempo comecei a conversar com a minha psicóloga e não fui. Acordei no dia seguinte ainda pensando. Levei uns três dias para conseguir confirmar que eu tinha feito a coisa certa. Conversei com o pessoal da TV Globo, e eles me diziam: você fez a coisa certa, parabéns, coisa e tal. Me convenci de que tinha feito à escolha certa.

Fui para Viena, onde a Seleção jogaria seu último amistoso antes da Copa contra a Áustria, e depois fomos para a Rússia. E aí foi tranquilo. Mesmo sendo um evento festivo, muita gente bebendo, muitas festas, muita mulher bonita em Moscou e na Rússia toda, nada disso me seduziu. Fiz uma Copa super tranquilo, focado exclusivamente no meu trabalho. Não saí para me divertir nenhuma vez. Só saía para jantar com o pessoal da TV Globo em restaurantes armênios, georgianos, russos, mas voltava direto para o hotel. Eu estava lá para trabalhar.

O pessoal da TV Globo me respeitou para caramba nesse meu tratamento. Eles tomavam vinho, mas tomavam discretamente, e tranquilamente a gente ia embora. Eles não bebiam na minha frente. Foi muito tranquilo nisso. Torcedor você dá um desconto. Ele bebeu bastante, está num momento festivo, e muita gente vem dizer: ô, Casão, vem tomar um chope comigo! Uma cerveja! Mas passava batido. Eu dizia: eu não bebo, cara. E ia embora.

Eu só fui no Teatro Bolshoi, no dia que eu cheguei, para ver balé. As outras coisas eu só conheci em trânsito, com motorista me pegando no aeroporto, levando para o estádio, levando para o hotel. Conheci a Rússia desta maneira. Eu fui para a Copa do Mundo trabalhar, não para fazer turismo, até porque o turismo seria muito arriscado. Sair pelas ruas sem por que, ver todo mundo bebendo. Conversei com meus filhos o dia inteiro, todos os dias. Decidi fazer a Copa tranquilo.

Eu não uso redes sociais. Eu tenho um Instagram que meu filho Leonardo cuida, tenho um Twitter que meu filho Vitor cuida, mas eles não passam nada para mim. Eles só falam para mim: pai, está dando polêmica isso, estão falando de você positivamente isso. As coisas sacanas eles não me passam. Eu não fico sabendo. Algumas pessoas fazem sacanagem para jogar as outras para baixo. Por que eu vou ver algo que me joga para baixo? Prefiro ver coisas que me jogam para cima. Não posso ir para baixo. Minha vida não pode ir para baixo. Então faz muito tempo que não fico chateado ou com raiva porque eu não vejo nada. A minha vida é todo dia.

No último dia, da final entre França e Croácia, me veio na cabeça: pô, acabou a Copa. Aí vieram todas as coisas. Apareceu um flashback na minha cabeça muito rápido de tudo o que aconteceu. De quando que saí, do trajeto, e ali me dei conta que a Copa do Mundo tinha acabado e eu estava sóbrio. Me emocionou para caramba. No dia a dia, eu não estava contando: “mais um dia sem beber”. Nada disso. Fiz as coisas normalmente, não fiquei preso ao meu tratamento. Fiquei preso à Copa do Mundo. E quando acabou me veio tudo isso na cabeça e fiquei emocionado mesmo. Consegui terminar essa Copa sóbrio e agora eu sei que pulei para um outro patamar. Passei pela maior prova que um dependente químico poderia passar sozinho, sem ninguém próximo de mim, só com a ajuda da equipe da TV Globo e das minhas psicólogas em São Paulo.

Hoje me sinto super feliz. Sei que virei uma página. Sei mesmo. Esse texto que eu escrevo certamente é um dos últimos em que eu vou falar do meu passado. O meu passado acabou na Copa do Mundo. Agora eu tenho apenas o meu presente e o meu futuro. Eu não falo mais de passado. Vocês vão ser as últimas pessoas com quem eu vou falar sobre isso. Aquele momento de emoção no fim da Copa foi o mais importante da minha vida nos últimos dez anos.

Por Revista Época

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