quinta-feira, maio 26, 2016

Ter 'presidenta' fez diferença para as mulheres?

Fátima Pelaes, do PMDB Mulher, evangélica em "defesa da vida e da família tradicional", foi indicada para a Secretaria da Mulher no governo interino de Temer.

Em 2010, quando Dilma Rousseff assumiu a Presidência como a primeira representante feminina no posto mais importante do país, a expectativa das mulheres era grande.

Esperava-se que a ex-ministra da Casa Civil pudesse ser a voz que elas não tinham em Brasília - já que, no Congresso, a participação feminina beirava os 10%.

Cinco anos e meio depois, Dilma se despediu do Planalto ao menos temporariamente e deixou um legado que, para ativistas e cientistas políticas, "foi bom, mas poderia ter sido melhor".

Especialistas ouvidas pela BBC Brasil citaram principalmente avanços na questão do combate à violência doméstica, da representatividade na política e da independência financeira da mulher.

As maiores críticas ficaram por conta de dois temas polêmicos: os direitos reprodutivos e a questão da diversidade sexual.

Já o recém-iniciado governo do presidente interino, Michel Temer, começou sob protestos pela escolha de um ministério 100% masculino. Ainda assim, o peemedebista manteve a Secretaria da Mulher (que chegou a ter status de Ministério e foi reduzida por Dilma por causa do corte de gastos). A pasta deverá ser comandada pela ex-deputada Fátima Pelaes, do PMDB Mulher, que já foi confirmada no cargo no site do partido.

O nome foi criticado por feministas, já que ela fazia parte da bancada evangélica da Câmara e é presidente da Frente Parlamentar da Família em Apoio à Vida. Ela, que foi defensora da legalização do aborto em seus dois primeiros mandatos como deputada, mudou de posição ao virar evangélica e hoje advoga pela "defesa da vida e da família tradicional".

Apesar disso, a nomeação da ex-consultora da ONU e especialista em Direitos Humanos, Flávia Piovesan, para a Secretaria de Direitos Humanos deixou um fio de esperança entre as defensoras das causas das mulheres.

A BBC Brasil preparou uma lista com algumas das principais reivindicações de grupos que defendem a igualdade de gênero e traz uma análise sobre o quanto esses tópicos avançaram ou retrocederam nos últimos anos, além de falar das expectativas para o próximo governo.
Representatividade da mulher na política

O Brasil ocupa o 121º lugar no ranking de igualdade entre homens e mulheres na política, segundo o ranking elaborado pelo IPU (Inter-Parliamentary Union) em 2013. Atualmente, 10% da Câmara dos Deputados é formada por mulheres e, no Senado, elas são 13%.

Por tudo isso, a participação feminina em secretarias e ministérios, segundo as especialistas, seria essencial para garantir não só a representatividade delas, como também para que as questões de gênero sejam colocadas em pauta.

"A democracia não se completa sem a participação real das mulheres. Mulheres e homens, no exercício da liderança política, devem estar comprometidos com a plataforma de direitos das mulheres dentre as grandes prioridades políticas", afirmou à BBC Brasil Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil.

No aspecto dos ministérios, Dilma ganhou destaque por ter nomeado o maior número de ministras mulheres na história do país - foram 18 em cinco anos e meio de governo.

"Ela queria que fosse paridade de ministros, metade mulher e metade homem. Mas por conta de brigas internas do PT não foi. Isso foi uma diferença brutal, porque nunca tivemos um governo que tivesse um número tão grande de mulheres representadas. E isso estimula várias mulheres a participarem da política", disse Maria do Socorro Braga, professora de Sistemas Democráticos e Teoria Política Democrática da Ufscar.

Nesse ponto, a falta de mulheres nos ministérios de Temer teve uma repercussão negativa tanto no Brasil, quanto internacionalmente. "Na situação atual, o Brasil passou a ser um dos pouquíssimos países do mundo sem mulheres no comando de ministérios", pontuou Gasman.

"Não estamos debatendo que precisa ter mulher nesse ou naquele lugar só porque é mulher. Estamos dizendo que o Brasil no século XXI tem mulheres com capacidade para estar em qualquer um dos ministérios. E nós representamos 52% da população, que ali não está representada. Temos muita gente qualificada", avaliou Jacira Melo, do Instituto Patrícia Galvão.

Em uma das medidas para amenizar as críticas, Temer nomeou Flávia Piovesan para a Secretaria de Direitos Humanos. Em entrevista à BBC Brasil, ela admitiu que há necessidade de mais representatividade das mulheres - mas não só na política.

"Tem que avançar e espero que avancemos. Eu creio que temos que avançar em todas as áreas. No Executivo, no Legislativo, onde as mulheres são ainda 10%, no Judiciário. Ainda é muito reduzida nossa representatividade."
Direitos reprodutivos

A questão que causa mais polêmica dentre as reivindicações de grupos de mulheres é a dos direitos reprodutivos - que incluem a luta pela legalização do aborto.

Com a primeira presidente mulher no poder, havia uma expectativa de que essa causa pudesse ser ao menos colocada em pauta na política brasileira. No entanto, não foi isso que aconteceu nos cinco anos e meio do governo Dilma.

"Para mim, uma das grandes tristezas do governo Dilma foi ver que a discussão sobre os direitos reprodutivos das mulheres não avançou em nada, pelo contrário. O tema foi totalmente silenciado", disse à BBC a antropóloga Debora Diniz, do instituto de bioética Anis.

"Mesmo com uma ministra absolutamente engajada (ministra Eleonora Menicucci, na Secretaria de Políticas para Mulheres), nada avançou, porque ela não podia falar nada. E, para falar a verdade, foi um retrocesso se olharmos para o fato de que os serviços que oferecem aborto legal (para os casos previstos em lei) terem sido cortados pela metade nesse governo."

Para Nalu Faria, da coordenação nacional da Marcha das Mulheres, o debate acabou prejudicado por conta da conjuntura conservadora tanto do Congresso, quanto da sociedade brasileira. Ela menciona a estratégia de José Serra, então candidato à Presidência pelo PSDB em 2010, de chamar Dilma de "abortista" na campanha.

"A partir do que foi a campanha, a gente já percebeu que ia ser muito difícil (abordar essa questão). A Dilma foi colocada contra a parede. E depois disso ela não pode ampliar o tema porque havia um conjunto de forças desfavoráveis", afirmou.

"Ela não tinha força suficiente para operar essa correlação de forças. Mas com certeza faltou um posicionamento mais forte dela."

As perspectivas para essa questão não reservam otimismo, na opinião das analistas. A ex-deputada Fátima Pelaes, cotada para a Secretaria da Mulher, era a favor da discriminalização do aborto, mas mudou de posição ao se tornar evangélica.

Em entrevista ao jornal Mensageiro da Paz, Pelaes disse que "como ainda não conhecia Jesus Cristo", defendia a bandeira por entender que "a mulher era 'dona' de seu corpo".

"Coloquei o mandato à disposição de Deus. Hoje, eu defendo o direito à vida, o direito de viver tem que ser dado para todos."

A professora da Ufscar afirma que diante de um cenário 'tão consevador" no Senado e na Câmara não vê um avanço da discussão.

"Na última eleição, os partidos grandes perderam cadeiras para os mais conservadores, de origem cristã. Eles aumentaram muito seu poder dentro do Congresso e por isso a tendência é que esse debate não aconteça", disse a professora da Ufscar.

"Cada vez mais estamos virando uma teocracia. Além disso, temos uma sociedade conservadora, que promove a santificação da maternidade. E com essa sobreposição da questão religiosa e desse fator cultural, a discussão não avança mesmo", observou Débora Diniz.
Igualdade no mercado de trabalho

Entre os avanços registrados no governo Dilma, as entrevistadas citam a maior presença das mulheres no mercado de trabalho formal. Segundo elas, programas sociais como Bolsa Família e políticas públicas de acesso à educação, como o Pronatec, permitiram que mais brasileiras tivessem registro em carteira.

Segundo relatório da ONU Brasil de 2015, as mulheres são maioria entre as beneficiárias de programas sociais. E também estão mais presentes nas empresas e escolas.

"O programa do governo de Dilma em termos de políticas públicas teve um impacto significativo na vida das pessoas mais pobres, especialmente das mulheres negras", diz a representante da ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman.

Os dados da entidade também mostram um aumento de 800% no número de microempreendedoras individuais em seis anos, passando de 21 mil em 2009 para 2,1 milhões em 2014. Desse total, mais de 495 mil pertenciam ao Bolsa Família.

Para a diretora-executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, o programa teve uma participação importante na emancipação feminina já que nos mandatos de Dilma mulheres se tornaram titulares do benefício nas famílias. Antes, com Lula, homens também poderiam ser responsáveis pelo cartão.

"[Essa mudança] só acontece quando o governante tem a percepção de que, na família, as mulheres são uma unidade, não só um indíviduo. O parceiro, quando tem a titularidade, pode passar para frente o Bolsa Família, gastar com outras coisas, a mulher não."

Melo teme que isso possa mudar com o novo ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra. Logo antes de sua posse, Terra disse que o Bolsa Família "não pode ser um objetivo de vida".

"Eu acho que não deve se mexer nisso agora, mas tem de se oportuniza a saída do programa. As pessoas têm que ter renda e não pode ser objetivo de vida viver só de Bolsa Família e o que está acontecendo é isso", afirmou o ministro.

Melo contesta a fala de Terra: "Ele não entendeu nada. Na extrema pobreza em que vive uma parcela considerável da população, isso não é um objetivo, é uma extrema injustiça".

Além da concessão do Bolsa Família, a coordenadora da pós-graduação em Ciência Sociais da UERJ Clara Araújo cita as condições mais flexíveis de empréstimos no Minha Casa Minha Vida e em outros programas de crédito habitacional, o que beneficiaria as mulheres.

"Você sabe que as mulheres, quando são chefes de família sem cônjuge e com filhos, têm uma renda menor. Se não houver um olhar em relação a isso, elas serão sempre excluídas."

No entanto, a professora critica o foco da maioria das políticas nas mães, deixando de lado as necessidades e desejos das mulheres mais jovens ou solteiras.

"Há sempre uma tensão entre afirmar as mulheres como sujeitas de si, como pessoas de direito só por serem mulheres, e o discurso da maternidade, de vê-las sobretudo como mães."

Segundo as entrevistadas, outra medida favorável à emancipação feminina no governo Dilma foi a aprovação da "PEC das Domésticas", emenda constitucional que amplia os direitos das empregadas domésticas. O texto que regulamenta a PEC foi publicado no Diário Oficial em junho de 2015 e garante sete novos direitos a essas profissionais, como auxílio-creche, seguro-desemprego e salário-família.

A lei que permite as empresas ampliarem a licença-paternidade de 5 para 20 dias também é mencionada como tópico positivo. Em março, Dilma sancionou o texto, que cria a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância e permitiria que pais dividissem os cuidados com as crianças por mais tempo.
Combate à violência e ao feminicídio

Colocar todas as ações previstas na Lei Maria da Penha em prática foi para Jacira Melo, do Instituto Patrícia Galvão, um dos principais destaques do governo Dilma no combate à violência doméstica - tópico muito bem avaliado pelas especialistas consultadas.

"A sensibilidade [do governo] possibilitou ações significativas para acesso à Justiça e O acolhimento das mulheres nos espaços urbanos e rurais. Isso foi absolutamente novo", diz Melo.

Ela cita também a Lei do Feminicídio, que tipifica o crime de feminicídio (assassinatos cuja motivação envolve o fato de a vítima ser mulher) e aumenta as penas previstas pelo Código Penal para esse delito. O texto foi sancionado no Brasil em março de 2015.

A inauguração de centros de acolhimento de vítimas de violência, as Casas da Mulher Brasileira, está incluída nessas medidas, segundo Nalu Faria, da Marcha das Mulheres. No entanto, pondera, a presença dos centros não foi tão extensiva quanto prometido - até agora duas unidades foram abertas.

"O programa previa uma casa por capital, o que não foi feito, mas ao menos cria uma referência interessante para ser implementada."

Em entrevista à BBC Brasil, a nova titular da Secretaria de Direitos Humanos - que na gestão Michel Temer foi incorporada ao Ministério da Justiça -, Flavia Piovesan, afirmou que a violência contra a mulher é uma das prioridades do governo, junto às ações afirmativas para negros.

"[A prioridade] é como combater, prevenir e implementar de maneira mais plena a Lei Maria da Penha em todo o país."

Questão de gênero e diversidade sexual nas escolas

Uma das grandes polêmicas durante o governo Dilma foi a da cartilha formulada pelo Ministério da Educação para abordar a questão de gênero e a diversidade sexual nas escolas públicas. Essa também era uma das pautas dos ativistas pela igualdade de gênero e acabou não indo para frente.

Logo que a notícia da cartilha, chamada "kit anti-homofobia", surgiu em 2011, uma enxurrada de críticas vieram, além de uma pressão da bancada evangélica e católica do Congresso, e tudo isso fez com que Dilma recuasse.

O kit era parte do projeto "Escola sem Homofobia" e tinha como objetivo abrir um debate nas escolas sobre temas como gênero e suas desigualdades, homofobia, diversidade sexual e luta pela cidadania LGBT.

"Não se trata de recuo. Se trata de um processo de consulta que o governo passará a fazer, como faz em outros temas também, porque isso é parte vigente da democracia", disse Dilma à época. O tema não voltou mais à tona desde então.

Para Maria do Socorro Braga, assim como a discussão o aborto, essa também não vai evoluir por causa do Congresso "conservador".

"Essas questões não vão ser colocadas em pauta em um Congresso tão conservador. Além disso, hoje temos uma grande parte da população que rejeita a pauta mais progressista", analisou.

Já Flávia Piovesan, dona da pasta dos Direitos Humanos no governo Temer, considera esse tema como uma de suas prioridades.

"Acho muito importante termos o diagnóstico: onde estamos e para onde vamos. E uma das minhas prioridades é trabalhar a questão da homofobia. Não podemos admitir desperdício de vidas em razão da intolerância pela diversidade sexual."

Ingrid Fagundez e Renata Mendonça/BBC Brasil

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