segunda-feira, junho 29, 2020

Além da doença, infectados pelo coronavírus precisam combater preconceito

Além dos riscos e incertezas da doença, a estigmatização dos pacientes que testaram positivo para a covid-19 pode levar outras pessoas a esconder a doença com medo da discriminação e desencorajar a procura imediata de atendimento médico

Família covid. Foi assim que Mariene Silva Moreno, 28 anos; o marido, Ricardo Bento da Silva, 31; e os filhos, Davi, de um mês; Pedro, de 3 anos; e Nicole, de 5, começaram a ser chamados e rotulados na vizinhança desde que a mulher contraiu o novo coronavírus. Mariene foi a primeira gestante com diagnóstico positivo para a covid-19 a dar à luz no Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Há pouco mais de um mês em casa, após passar pelo difícil período de isolamento social, a família de Planaltina ainda é ameaçada pela invisibilidade da doença — mesmo depois de todos terem refeito os testes e de os resultados darem negativo.

“Até hoje passo por isso. Amigos que não querem pegar algo que estava na minha mão, porque dizem que está contaminada; pessoas dizendo que todos nós estamos com coronavírus. Ficam comentando e contando para os outros. Dentro da minha própria família, isso aconteceu. Gente que não quis conhecer o bebê, porque falou que ele estava infectado”, desabafa Mariene. Os impactos do preconceito e da estigmatização social são inúmeros — do psicológico ao financeiro.

Autônoma e revendedora de itens de beleza, a mulher relata que as vendas caíram muito, porque as clientes pensam que o vírus estará nos produtos. “Para algumas pessoas, eu tento explicar. Falo que refiz o teste, que deu negativo, que tomo todos os cuidados, assim como todos estão tomando. Mas tem muita gente que não entende. E as palavras de algumas pessoas doem, você observa que é por maldade”, conta.
Depois de enfrentar uma árdua e, muitas vezes, solitária batalha contra o vírus, essa é a realidade encontrada por pacientes recuperados da doença. Não à toa, entre os mais de 27 mil curados da covid-19 no DF, é difícil dar nome, rosto e personalidade aos números. “No começo, não queria falar com ninguém. Foi um processo doloroso. Primeiro, estava isolada em um período da maternidade no qual precisamos de ajuda. Não podia estar com o Davi, sentir o cheiro dele. Não podia estar com a minha família. E tinha sofrido no hospital, pensava que ia piorar a qualquer momento.”

E, quando parece que tudo isso foi superado, vem o preconceito. “Isso afeta, porque a gente precisa de apoio e não de crítica. Entendo o medo das pessoas, mas o vírus não dura para sempre, não vai ficar o resto da minha vida. É uma fase que termina, tem um ponto final”, argumenta Mariene. Apesar da dor e do sofrimento, é na companhia dos filhos e do marido que ela tem encontrado forças. “É por eles que não desanimo, e luto todos os dias.”

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a estigmatização social é a associação negativa entre uma pessoa ou um grupo de pessoas que compartilham certas características e uma doença específica. E se torna mais forte durante um surto ou uma pandemia. Isso pode significar que esses indivíduos são rotulados, estereotipados ou discriminados, recebem tratamento diferenciado ou experimentam uma perda de status devido à percepção de um vínculo entre eles e a doença. O tratamento negativo pode, ainda, afetar pessoas próximas, como cuidadores e familiares.

Medo do desconhecido

Para a covid-19, a organização lançou, em março, um guia contra o estigma social (leia Para saber mais). Nele, a OMS pontua que o nível de estigmatização social associado à nova doença é baseado em três fatores principais: a covid-19 é uma enfermidade nova e, em grande parte, desconhecida; frequentemente, a sociedade tem medo do desconhecido; e é fácil associar o medo com “o outro”. “É compreensível que haja confusão, ansiedade e medo entre o público em geral. Infelizmente, esses fatores também estão alimentando estereótipos prejudiciais”, descreve o documento.

Na avaliação do psicólogo e logoterapeuta Sam Cyrous, é na sensação de medo que está a raiz do comportamento. “Quando não compreendemos algo, temos medo e, na natureza humana, a gente vê isso repetidas vezes. Os desafios que a covid traz são vários. Os cientistas estão aprendendo. As falas, como as da própria OMS, nem sempre são compreendidas corretamente, e a população observa tudo isso. O vírus é invisível. Graças a Deus, não tem uma estrela de Davi para colocar nas pessoas, como a Alemanha nazista fazia. Ele ataca qualquer um, a qualquer momento, de qualquer forma. O que chega a ser irônico, porque o novo coronavírus está nos ensinando que todos somos iguais. O vírus comprova que não há melhores ou piores, mas nós, seres humanos, por causa desse medo, reagimos de forma equivocada”, contextualiza.

Ao temer o desconhecido, nós colocamo-nos diante do estigma, da manifestação brutal contra uma pessoa recuperada da doença. Contudo, o psicólogo pondera que essa é uma situação conhecida, por exemplo, por diferentes gerações da população negra, desde que foi trazida para o Brasil. “Espero que a gente aprenda e rejeite esse comportamento de que é permitido estigmatizar. Na verdade, é um ato de coragem aceitar outra pessoa que é diferente de mim. Nós, seres humanos, temos a capacidade de pensar sobre as coisas e fazer deste momento um período de solidariedade, de aceitação, de cuidado, de acolhimento ao próximo. É importante perceber que a pessoa tem uma vida antes daquele encontro com o meu preconceito, com o meu medo”, avalia.


Para o profissional, todos temos nossas cautelas, mas não podemos deixar que elas nos controlem. “Isso pode provocar situações adversas, como quem tem a doença não procurar ajuda ou quem não tem, mas apresenta algum sintoma parecido, ganhar um olhar torto na rua.”

Sobrecarga psicológica

Como se o resultado positivo para o exame já não envolvesse incertezas e angústias suficientes, o paciente ainda precisa enfrentar os olhares e tratamentos sociais atravessados. Assintomática, a relações-públicas Camila Rocha, 39, fez o teste no começo de junho, porque tinha marcado, mas não chegou a ter contato com pessoas contaminadas. “Na hora em que peguei o resultado, quase caí da cadeira. Nunca na minha cabeça pensei que daria positivo. Postei no grupo da família e minha mãe logo falou: não conta para ninguém, o que as pessoas vão achar? O que vão pensar?”, relembra.

Mesmo saudável, com um bom histórico, sem comorbidades, Camila pensou no pior. “Cheguei a telefonar para uma amiga médica e perguntar se tinha leito no hospital. A gente vê muita coisa ruim. E realmente tem. Então, mexe muito com o psicológico”, detalha. Durante o período de tratamento e de isolamento, a relações-públicas vivenciou constrangimentos e situações desagradáveis por conta do diagnóstico. “É muito triste”, descreve.

A impressão de Camila é que a sociedade passa a lhe vigiar, e você precisa prestar contas de tudo. Agora, mesmo recuperada, as preocupações não terminam. “Não sei se vou me contaminar de novo. Vai que, quando tem de novo, o contágio é pior? Enquanto não tiver nada para tratar, é óbvio que dá medo.” A sensação é compartilhada por Mariene, cujos últimos exames deram negativo: “Tenho muito medo mesmo. De pegar, de passar para os meus filhos. Limpo a casa com água sanitária, borrifamos álcool no ar, como se fosse um spray, limpamos as superfícies de três a quatro vezes”.

O clínico-geral e coordenador do pronto-socorro do Hospital Santa Lúcia, Luciano Lourenço, explica que a literatura mostra dois quadros diferentes de comportamento do novo coronavírus em relação ao ciclo de vida. “Pacientes que tiveram casos leves, que trataram sintomas leves, que não precisaram de internação hospitalar. Catorze dias após o início dos sintomas, esse indivíduo não tem mais carga viral capaz de contaminar outra pessoa. Há, também, os pacientes com quadro grave, que precisaram de internação hospitalar, por vezes, de ventilação ou intubação. Esses, a gente precisa de, pelo menos, 21 dias para que não seja mais capaz de infectar outro indivíduo”, detalha.

Tanto Lourenço quanto o psicólogo Cyrous elencam a informação correta como ferramenta fundamental contra o preconceito. “O que um paciente que foi infectado com uma carga grave mais precisa, depois de 21 dias de tratamento, é de carinho e de atenção. Além de não transmitir mais, ele não se infecta mais. Ele pode voltar às suas atividades de forma muito tranquila. Esse pânico que uma grande epidemia causa tem que ser desmanchado com informações corretas”, conclui o médico.

Ações educativas

Ainda assim, Elaine Bida, diretora de Serviços de Saúde Mental do GDF, percebe situações de pessoas se solidarizando. “Principalmente porque aqui muitas pessoas moram só, sem família ou com parentes em outras cidades. Esse é um lado positivo.” Para trabalhar com o estigma e outras questões relacionadas à covid-19, a Secretaria de Saúde do DF desenvolve ações educativas voltadas tanto para a população quanto para os profissionais. “Foram criados canais para minimizar, com esclarecimentos, tirando dúvidas, disponibilizando cursos, dicas de manejos e outras ações em psicoeducação. Temos, por exemplo, o canal Matriciamento e Por mais saúde mental, no YouTube, os quais tratam dessas questões”, exemplifica.

Para a diretora e também psiquiatra, cada um tem uma experiência que vivenciou e que se mistura com a estrutura psíquica, os mecanismos de defesa, que é muito individual. Já estamos isolados fisicamente, precisamos diminuir essa barreira do medo, pois, com apoio, seja de um profissional, seja de pessoas próximas, passar por esse momento se torna menos doloroso.”

Guia contra o preconceito

O material A estigmatização social associada à covid-19. Guia para prevenir e abordar a estigmatização social foi desenvolvido pela OMS com a Cruz Vermelha e o Fundo das Nações Unidas para Infância. Nele, vários aspectos são elencados para lidar e tratar com o estigma, as palavras que usamos, as informações que disseminamos, entre outros. Confira alguns deles:

As repercussões da estigmatização social

» Ela pode minar a coesão social e levar ao isolamento social de grupos da população, o que poderia contribuir para aumentar a probabilidade de disseminação do vírus. Isso pode provocar problemas de saúde mais graves e dificuldades em controlar o surto da doença.
» Pode levar a pessoa a esconder a doença com medo da discriminação.
» Desencorajar a pessoa a procurar atendimento médico imediatamente.
» Desencorajar o indivíduo a adotar comportamentos saudáveis.

A abordagem da estigmatização social

Os dados demonstram claramente que a estigmatização e o medo em torno das enfermidades transmissíveis dificultam a resposta. O que funciona é reforçar a confiança nos serviços sanitários; demonstrar empatia com as pessoas infectadas; entender a doença e adotar medidas eficazes e práticas para que as pessoas possam contribuir para a sua segurança e a de seus entes queridos. A maneira como as informações sobre a covid são comunicadas é fundamental para ajudar as pessoas a adotarem medidas eficazes para ajudar a combater a doença e evitar alimentar o medo e o estigma. É preciso criar um ambiente no qual se possa discutir e abordar a doença e suas repercussões de maneira aberta, honesta e eficaz.

Correio Braziliense

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