domingo, fevereiro 03, 2019

Após castrar marido, Lorena Bobbitt conta a história de violência doméstica por trás do caso

O casal John e Lorena Bobbit durante o casamento Foto: Divulgação

Lorena é muito prática em relação à história toda. Ali, diz enquanto dirige seu Kia, era o hospital onde os cirurgiões recolocaram o pênis de John Wayne Bobbitt, cortado por ela com uma faca de cozinha enquanto ele dormia, na noite de 23 de junho de 1993. A quinze minutos ficava o terreno onde ela atirou o pênis pela janela do carro. Mas por que ela jogou fora?

— Eu estava tentando dirigir, é claro, mas tinha essa coisa na mão, então eu não conseguia dirigir, aí me livrei dela.

É claro.

Mais adiante, fica o salão de beleza em que ela trabalhava e para onde fugiu.

— Não sou vingativa. Eu contei para eles onde estava — diz Lorena Gallo, seu nome de solteira.
“Eles” são os policiais que, às 4h30m da manhã, foram procurar o membro desaparecido. Eles o acharam, puseram no gelo numa caixa de cachorro-quente de uma lanchonete próxima e, após nove horas e meia de cirurgia, ele foi recolocado. Estes são os detalhes que todos conhecem. A história real, destaca Lorena, é sobre uma jovem imigrante que sofreu anos de violência doméstica, foi estuprada pelo marido naquela noite, não teve para onde ir e perdeu a cabeça.

— Eles sempre se concentraram nisso... — diz. Por “isso”, ela quer dizer o pênis cortado, recolocado e, alguns anos depois, cirurgicamente aumentado. — Era como se todos tivessem esquecido ou não se importassem com os motivos pelos quais eu fiz aquilo.

Lorena está certa, é claro, em afirmar que a maioria das pessoas esquece que, antes de ela ser julgada pelo que fez, John foi acusado de violência sexual. (E absolvido.) Ela também está certa em afirmar que as pessoas esquecem que um júri a considerou inocente por insanidade temporária.

Esquecemos as testemunhas que afirmaram ter visto hematomas em seus braços e pescoço, que ela ligava para a polícia repetidamente e que John falava com amigos sobre forçar a esposa a fazer sexo. Após o julgamento, ele foi preso várias vezes e cumpriu pena por violência contra duas mulheres diferentes.

— Essa história é sobre uma vítima e uma sobrevivente, e sobre o que está acontecendo em nosso mundo hoje — desabafa.
Da piada ao ativismo

É isso que ela conta em “Lorena”, documentário de quatro partes produzido por Jordan Peele, com estreia prevista para 15 de fevereiro no Amazon Prime Video.

Já faz 26 anos que a equatoriana Lorena Bobbitt se tornou parte da cultura popular, quase sempre como piada. Em 1994, após uma breve internação forçada num hospital psiquiátrico, ela voltou à sua vida como manicure.




O salão de beleza, afinal de contas, foi seu refúgio antes e depois do julgamento. Lorena diz que conversava com as clientes e descobria que elas também haviam sido vítimas de abuso doméstico.

— Foi quando percebi que o que aconteceu comigo poderia ter acontecido com qualquer mulher em uma situação desesperada — diz.

Ela continuou trabalhando no salão e foi corretora de imóveis. Frequentava a igreja católica e a faculdade comunitária, onde conheceu David Bellinger. O casal agora tem uma filha de 13 anos. E a manicure hoje mantém uma organização sem fins lucrativos, Lorena’s Red Wagon, que ajuda os sobreviventes da violência doméstica.

John passou a estrelar filmes pornográficos (“John Wayne Bobbitt: Uncut” e “Frankenpenis de John Wayne Bobbitt”), enquanto Lorena concedeu algumas entrevistas, mas resistiu a ofertas para transformar sua saga de castração em filme ou série de TV. Ela chegou a recusar US$ 1 milhão para posar para a “Playboy”. Os cineastas que se aproximaram nunca quiseram se concentrar no tema da violência doméstica.

Mas essa era a versão da história que Joshua Rofé queria contar. Ele explicou isso a Lorena em 2016, depois de ler sobre sua ONG. Os dois conversaram por quase um ano até ela decidir que o clima finalmente lhe era favorável.

Ao mesmo tempo, uma onda de filmes, documentários e podcasts (“Eu, Tonya”, “O caso de Clinton”, “Slow Burn”) trouxe nova luz a outras mulheres envolvidas em escândalos nos anos 90.

— Nós fomos difamadas pela mídia. É isso o que acontece com as mulheres — critica Lorena.
Inspirado em ‘O.J.’

Pouco depois de Jordan Peele ganhar um Oscar por “Corra!”, Rofé comentou sua fixação na história de Lorena. Peele tinha devorado “O.J.: Made in America”, o documentário da ESPN, e viu ingredientes semelhantes no projeto.

— Eu me senti atraído pela ideia de usar 25 anos de retrospectiva sobre um assunto que todos achavam que conheciam — diz Peele. — E tratar a dinâmica de gênero da forma como “O.J.” discutiu a questão racial.

O documentário se desenrola principalmente em 1993, em meio ao surgimento de programas jurídicos na TV e talk shows vespertinos de fofoca.

— Há um terceiro personagem nessa história, além de Lorena e John. Somos nós, a sociedade, e o que fizemos com as informações que tínhamos disponíveis — afirma o produtor.

John também é entrevistado no documentário. Ele sustenta que planejava se divorciar e que, após se negar a fazer sexo naquela noite, ela cortou seu pênis enquanto ele dormia, por vingança.

— Ela nunca foi abusada; ela sempre foi a agressora, e ela cortou meu pênis porque eu ia largá-la — afirma.

— Como posso me arrepender de algo que não pretendia fazer? — questiona.

Mas ela não se arrepende nem de ter tornado John Wayne Bobbitt um nome conhecido? De ter-lhe dado um pouco de fama e uma pequena renda vitalícia?

— Não tenho nada a ver com o modo como ele escolheu viver a vida após o incidente.

Antes de concordar em colocar “o incidente” de volta na imaginação do público, Lorena conversou com Peele, que explicou a ela como haveria, inevitavelmente, humor nessa versão.

O filme, diz o cineasta, se encaixa em sua missão maior de criar produções que deem voz a pessoas marginalizadas, mas é impossível não reconhecer as bases sombrias e trágicas de um filme dos irmãos Coen. Ele perguntou a Lorena se ela estava bem com isso.

— Eu era tema de muitas piadas nos anos 90, e para mim foi cruel — relembra. — Aceito as piadas, se com isso eu puder enfrentar o problema da violência.

Por: O Globo

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