Cachoeira de Paulo Afonso, em fotografia perdida no incêndio da Biblioteca Nacional (RJ)
Cachoeira de 'Paulo Affonce' desenhada por Pedro II | Foto: Museu Imperial (RJ)
Mapa com a rota da visita imperial ao Nordeste (então Norte), em 1859 | Foto: Museu Imperial (RJ)
O traço de aventureiro é um dos que mais se destacaram na personalidade multifacetada do imperador dom Pedro II. Também ficou famoso por receber louvores exagerados e representar certa mistificação saudosista (para aqueles que a ele atribuem qualidades excepcionais). Tudo retrato da literatura apologética sobre esse personagem histórico. O fato é que a força da tradição explica a permanência do seu nome até hoje no imaginário brasileiro. A constatação é do jornalista Davi Roberto Bandeira da Silva, ao abrir a reportagem 'A Cachoeira do imperador', adaptada para a web por Caroline Svitras em publicação na versão online da revista
Leituras da História (Edição 73, Editora Escala), em 5 de maio de 2017.
Durante a sessão imperial, em 11 de setembro de 1859, d. Pedro II avisou: “Para melhor conhecer as Províncias do meu Império, cujos melhoramentos morais e materiais são alvo de meus constantes desejos e dos esforços do meu governo, decidi visitar as que ficam ao norte da do Rio de Janeiro.” Ele realmente adorava viajar, impulsionado pela curiosidade de conhecer novas paisagens, populações diferentes, admirar a flora e a fauna. E entre as muitas viagens e explorações feitas, o imperador registrou em seu diário a história de sua visita à exuberante cachoeira de Paulo Afonso, nos sertões das Alagoas.
Viagem insólita
Em 1859, d. Pedro II iniciou sua visita às Províncias do Norte do Brasil (hoje Nordeste brasileiro). Foram 134 dias de andanças, paradas e festas nas Províncias para receber o imperador. O roteiro, como não podia deixar de ser, incluiu a famosa cachoeira de Paulo Afonso, por sua beleza e por estar em uma região estratégica, pois o imperador buscava obter mais apoio para seu governo, contextualizando, pois, a iniciativa viageira. O nome Paulo Afonso é dado à cachoeira como uma homenagem ao sertanista Paulo de Viveiros Afonso, que explorou a região. Alguns registros informam que por volta de 1725, o aludido sertanista teria recebido uma sesmaria situada na margem esquerda do Rio São Francisco. O donatário teria ocupado, além das terras recebidas, algumas porções de terras existentes do lado baiano, onde fundou uma aldeia denominada Tapera de Paulo Afonso.
De fato, após a longa estadia imperial, foram distribuídos muitos títulos nobiliárquicos de modo a assegurar suporte governamental. E, além disso, tempos depois, a realeza autorizou a construção de uma ferrovia na região, que seria denominada Paulo Afonso. O empreendimento iniciou as atividades em 1882, porém, como se constatou depois, foi um projeto que só traria prejuízos financeiros, sendo, por fim, desativado em 1964.
A viagem teve início em Salvador, na Bahia, no dia 12 de outubro de 1859. Nessa data, o imperador e toda a comitiva – exceto a imperatriz Teresa Cristina, que permaneceu em Salvador – seguiram viagem no vapor Apa. Estavam a bordo o presidente da Província de Sergipe, Manuel da Cunha Galvão; o conselheiro João de Almeida, ministro do Império; visconde de Sapucaí, camarista; e o barão de Atalaia, além de comandantes, capitães de bordo, senhores de engenho, diretores de escolas, correspondentes de jornais e outros convidados.
No percurso, o imperador consultava as notas escritas por Silva Caroatá e Vieira de Carvalho; além disso, tinha em mãos o mapa elaborado pelo engenheiro Henrique Halfeld, que, por ordem do Império, desenvolveu estudos técnicos entre os anos de 1852 e 1854, na região do Rio São Francisco.
A primeira parada foi no dia 14 de outubro de 1859, em Piaçabucu, Alagoas, quando o Apa atracou, ocasião na qual o monarca foi recebido com muita festa e música de rabecas. Simpático, ele percorreu rapidamente o povoado alagoano, visitou a capela e o colégio, cumprimentou a todos e se foi. Antes de galgar as águas do Rio São Francisco rumo a Penedo, em Alagoas, o soberano avisou, de antemão, ao presidente daquela Província, Manuel Pinto de Souza Dantas, também a bordo, que pretendia excursionar pela Província das Alagoas por no máximo 15 dias. E lá se foram. No mesmo dia, houve o transbordo na Ilha do Betume e o grupo chegou ao seu destino, dessa vez, a bordo da embarcação Pirajá.
“Viva o imperador!”
Em Penedo, d. Pedro II foi recebido mais uma vez com euforia pela entusiasmada multidão que ali aguardava a frota imperial, aos gritos frenéticos de “Viva o Imperador!” Em seguida, foi conduzido pelos representantes locais, além das autoridades civis, eclesiásticas e do povo em geral. Ele, normalmente, desembarcava trajando calça branca, paletó preto e chapéu de palha coberto de pano de linho. Todo esse aparato receptivo ao desembarque imperial revela aspectos simbólicos que consubstanciam a força política da cidade, em que pesem as ostensivas adulações, nos ritos de chegada, encurtando a distância entre os governantes e o povo, sempre distante do contexto decisório.
Em solo, o monarca participou do te-déum (cântico de Ação de Graças) e, como de costume, visitou as igrejas, fazendo observações sobre os traços mais interessantes da arquitetura; conversou com os jovens nos colégios e visitou as fábricas de produção de óleo de mamona, de preparo de arroz e os alambiques de aguardente. Após tantos compromissos, ao deixar Penedo, em 16 de outubro, continuou o estafante percurso rumo a invadir o sertão.
Prosseguindo em seu itinerário, o imperador, ao visitar Propriá, no Sergipe, fez mais um exercício de suas funções, entre as quais podemos destacar sua preocupação de vistoriar escolas, capelas, hospitais e assistir ao te-déum. Lá, demorou-se algum tempo, salientou o despreparo dos professores e a inutilidade das aulas ministradas em alguns colégios. Como de costume, o roteiro era quase sempre o mesmo: fez doações polpudas à Igreja, aos pobres e comprou a liberdade de escravos. Afinal, o principal objetivo da viagem era ganhar apoio, atendendo aos interesses políticos locais e preservando sua figura de majestade. Frisa, entretanto, que foi impossível deixar de perceber a extrema miséria da população.
Seguindo o roteiro, ainda por Alagoas, deixou no diário sua impressão sobre a vila de Pão de Açúcar: “O nome da vila não é bem cabido, pois que o morro é antes um mamilo pedregoso do que Pão de Açúcar.” Continuando a jornada, o vapor Pirajá atraca na povoação de Piranhas, onde Pedro II destaca a aparência pobre do lugarejo: “O aspecto do lugar é tristíssimo e o calor é horrível.” Dali em diante, o trajeto seria feito a cavalo, sob o comando do guia, major Manuel Calaça, proprietário de grande fazenda naquela região, que passava informações curiosas sobre a fauna e a flora do sertão, falando muito, por exemplo, sobre o xiquexique, o mandacaru e a quixabeira. O monarca ficou impressionado com a vegetação da caatinga, bem como destacou os trajes, os costumes e o desembaraço dos nativos sertanejos.
Prestes a comemorar seus 34 anos, Pedro II enfrentou muitas dificuldades durante o trajeto à cachoeira – devido à extensa distância, ao calor insuportável e à escassez de água. Por outro lado, mostrou-se afável, apesar do visível incômodo com o intenso clima do sertão. O jovem monarca traçou, no diário, relevantes esboços dos lugares por onde passava e de seus acidentes geográficos.
Deslumbrante…
Ao amanhecer do dia 20 de outubro de 1859, o imperador chegou à famosa cachoeira de Paulo Afonso. Pôs-se logo a apear e a percorrer vários pontos da cachoeira, examinando tudo o que observava na natureza que, ainda não sabia ele, futuramente seria sacrificada pelos interesses do progresso nacional.
Ao começar a descida pelos rochedos, ele se deparou com a magnífica vista. Não hesitou diante do risco das quedas e escalou trechos perigosos na ida à furna dos morcegos, inclusive “dando, contudo, três quedas nesta última exploração” – devido a essa incidência, escreveu no diário. Em suas anotações, em um misto de admiração, de espanto e de alegria, registrou: “Tentar descrever a cachoeira em poucas páginas, e cabalmente, seria impossível, e sinto que o tempo só me permitisse tirar esboços muito imperfeitos.” O correspondente do Jornal do Commércio evidenciou o contentamento do monarca diante daquele cenário: “Havia alguma coisa de solene na contemplação silenciosa do Imperador: a fadiga da viagem desaparecia de sua fisionomia.” Passou a noite em um barracão erguido pelo coronel Pedro Vieira, que não poupou esforços a fim de que nada faltasse à comitiva imperial.
O barão de Jequiá, o barão de Atalaia, o doutor Titara, o doutor Oiticica, o major Calaça, o tenente Joaquim Siqueira Torres (futuro barão de Água Branca) e o 2º tenente Augusto Mendonça foram alguns dos que acompanharam a visita imperial à cachoeira, além de muita gente que lá aguardava – vinda dos diversos lugares da região. Em face da educação rígida a que fora submetido, d. Pedro II se revelou nas visitas uma pessoa com inteligência orgulhosa, mas totalmente despojado da mesquinhez aristocrática.
Logo na manhã seguinte, 21 de outubro, a comitiva retornou, seguindo itinerário inverso. A tropa imperial chegou no dia 24 de outubro de 1859 em Penedo, de onde seguiu para a Bahia. Em Alagoas, ao todo, o percurso em navio a vapor foi de 212 km e a cavalo 60 km.
Justificando a importância dessa viagem, acredita-se, porém, que o objetivo primordial da visita à cachoeira não foi o simples desejo de tomar conhecimento, embevecido, da portentosa queda d’água, conforme exclama extasiado o monarca: “(…) O arco-íris produzido pela poeira d’água completava esta cena majestosa.” O valor da honrosa paisagem da cachoeira – por mais decantado que possa ter sido, ou descrito e louvado por nossos literatos – não compensaria o que se perdeu, sobretudo em tempo e esforço, com a interrupção da atividade cotidiana de líder da nação que, à luz das leis, era o emblema da unidade nacional. Em vista disso, foi o aspecto político que naturalmente envolveu a presença da maior autoridade do país na região, ancorado pelo Poder Moderador, que servia de “para-choque” entre os dois grandes partidos políticos: o Conservador e o Liberal, que então digladiavam.
Assim, é sob essa perspectiva que se torna plenamente compreensível a estafante viagem de dom Pedro II pelo Norte do país, que contribuiu para difundir, em massa, vários títulos nobiliárquicos em função de interesses determinados. Portanto, classificá-la como simplesmente aventureira seria minimizar o legado de sua controvertida vida política e cultural. Do mesmo modo, seu pioneirismo como desbravador ao apresentar as recordações sertanejas dos lugares visitados em um conjunto de informações (geográficas, etnográficas e paisagísticas) de inestimável valor para o Brasil.
Coincidentemente, aliás, na ocasião do banimento do território nacional da família imperial, em 1889, pelas forças da recém-proclamada República, Pedro II embarcou às pressas em um navio chamado Alagoas. Na ocasião, o então abnegado monarca, interrogou em alto e bom som: “Já que estou no Alagoas, por que não me levam para Penedo?” Certamente, seria bem-vindo…