NUNCA HAVERÁ UMA ÚLTIMA PALAVRA*
Mesmo nesta hora extrema, falar da minha mãe é fácil. Eu passaria horas falando dela, porque o repertório é muito vasto. Anotei umas poucas coisas e já adianto que não é o comum pra se dizer na ocasião. Mas minha mãe, definitivamente, não era uma pessoa comum.
Algumas coisas sobre ela saltavam aos olhos: era uma mulher muito bonita. Altiva, imponente, rigorosa, tinha um gênio danado e muita autoridade. Espirituosa, senso de humor afiado e impiedoso. Dona de uma personalidade magnética, ela atraía as pessoas de maneira peculiar e irresistível.
Elegante no porte e no trato social, ela também entendia tudo de etiqueta. Sempre que ia a um velório ou missa de sétimo dia, por exemplo, reparava se a família estava bem vestida pra ocasião. Voltava dizendo “a viúva usava um lilás bem clarinho…” - ela adorava lilás; ou “a filha estava com uma blusa de seda de pois, muito delicada…”. Pensando nisso, escolhi esse vestido de bolinha pra usar hoje, acho que ela aprovaria meu figurino.
Natural de Petrolândia, filha de Santo e Carminha, neta de Cecilia Delgado. Perdeu precocemente os três irmãos: Eraldo, Everaldo e Mozart.
Fez faculdade de jornalismo e letras, e dedicou sua vida profissional à educação. Foi minha diretora de escola desde o primeiro ano do primário até último ano do segundo grau, o que me custou anos de terapia, porque ela era uma diretora linha duríssima. Costumava dizer que ali no colégio eu não era sua filha, ou que eu tinha que dar o exemplo mais que qualquer outro aluno.
Ela ensinou a mim e a muita gente a ler. Eu não falo sobre alfabetizar, falo de apresentar a literatura, esse enorme portal enorme que ela desvendou pra tanta gente.
Nós sempre tivemos em casa uma rica biblioteca, ela sempre adquiria novos livros, amava fazer coleções, e tinha devoção por enciclopédias. Talvez também sob essa forte influência, meu pai abriu a livraria na velha Petrolândia, para onde nos mudamos quando eu era pequena. Eu tive uma infância muito privilegiada, entre uma biblioteca e uma livraria.
“Uma mulher à frente do seu tempo”, ouvi essa frase várias vezes hoje. Além de literatura, sempre gostou de política, fortemente inspirada pelos ideais de justiça social.
Nunca se curvou a nenhum tipo de opressão. Uma única vez na vida, ela se deu conta que tinha um algoz. Faz uns 20 anos. Ela teve notícias de uma amiga que não via há muito tempo, e resolveu visitar. Chegando lá, encontrou a amiga com enfisema pulmonar severo, alternando a máscara de oxigênio com tragos de cigarro.
Mainha, que até então sequer havia cogitado largar o vício, jamais se sentira premida por deixar de fumar, daquele momento em diante nunca mais acendeu um cigarro, e não parecia sentir falta. Determinada, essa era a minha mãe. Ao perceber que se curvava ao cigarro, “aquela coisinha…”, decidiu: “vou mostrar quem é mais forte!”. Mas, ali, o fumo já tinha feito estrago suficiente, durante quase cinquenta anos, pra comprometer a qualidade do resto dos seus anos de vida. Fica o exemplo.
Minha mãe teve o melhor marido e nos deu o melhor pai que alguém pode ter. Painho mimava tanto mainha, que toda semana ele trazia não uma, mas duas caixas de chocolates, que ela degustava antes de dormir. Também chegava sempre com um raminho de flores, se encontrasse um pé delas pelo caminho. Nos dias especiais, trazia um buquê. Nos dias comuns, em todos eles, preparava e servia o jantar dela. Cinquenta anos de casados em setembro próximo.
Meu pai era tão cuidadoso com minha mãe, nos pequenos e nos grandes gestos, que a gente viu várias vezes ele correr pro palco, no meio de uma festa, pra interromper a orquestra a tempo de impedir que tocassem uma certa música que deixava ela muito triste, porque fazia lembrar da morte prematura do irmão Mozart.
Era exatamente esse pensamento que me ocorria na hora que minha mãe partiu, a lembrança desse pequeno e heróico gesto amoroso do meu pai, tantas vezes repetido. Foi quando me dei conta que, talvez por isso, nunca tivesse ouvido a música inteira, e fui atrás dela. Então, peço agora, ao meu pai, licença pra dizê-la:
O relógio
Por que não paras, relógio?
Não me faças padecer
Ela irá para sempre
Breve o sol vai nascer
Não vês? Só tenho esta noite
Para viver nosso amor
Teu badalar me recorda
Que sentirei tanta dor
Detém as horas, relógio
Pois minha vida se apaga
Ela é a luz que ilumina meu ser
Sem seu amor não sou nada
Detém o tempo, eu te peço
Faz esta noite perpétua
Pra que meu bem não se afaste de mim
Para que não amanheça
Enquanto eu lia em silêncio essa letra, os ponteiros do relógio pararam. O tempo parou junto com o coração dela. Mainha partiu na hora do Angelus, às 18h do dia 28 de maio, mês de Maria, Nossa Senhora, Mãe de Jesus e de nós todos, que lhe acolhe em seus braços, aos pés da Santíssima Trindade.
Em nome do meu pai, Gilberto, das minhas irmãs, Karina e Kelly, e no meu próprio, agradeço a todos os que vieram homenagear minha mãe e nos trazer um abraço de consolo. Estamos certos que esse amor todo, aqui recebido, é um farol que ilumina o caminho dela, e a prova do quanto sua vida foi larga e sua alma exuberante.
Palavras de Karla Cecília, em 29 de maio de 2022