14 novembro 2025

INSS abriu brecha para fraude bilionária de entidades de pesca; de 2020 a 2025, o Instituto assinou acordos com 705 entidades de pesca em todo o país

Abraão Lincoln Ferreira da Cruz, presidente da CBPA, escoltado pela Polícia do Senado após receber voz de prisão. Imagem: Carlos Moura/Agência Senado.

Por Natália Portinari - Colunista do UOL

As fraudes no seguro-defeso, benefício pago pelo governo federal a pescadores artesanais, cresceram com a omissão do INSS, mostra um levantamento do UOL.
 órgão permite que entidades investigadas por desvios e falsificações continuem inscrevendo milhares de supostos pescadores no seguro.

São as entidades com acordos de cooperação com o INSS —e não pessoas físicas— as principais responsáveis por inscrever pescadores no seguro, de acordo com informações obtidas pelo UOL via LAI (Lei de Acesso à Informação).

Em 2024, de 1,1 milhão de beneficiários, 813 mil foram inscritos para receber o seguro através dos acordos de cooperação técnica. É o mesmo instrumento que foi usado para fazer descontos nas contas de aposentados.

Por isso, a relação das entidades de pesca com o INSS, que já estava na mira da investigação da Polícia Federal no caso dos aposentados, também está sob suspeita no caso do defeso.

Omissão do INSS

Em fevereiro de 2022, a Polícia Federal apontou em uma investigação no Pará que dirigentes de entidades estavam inflando os números, desviando recursos públicos e coagindo trabalhadores a darem parte de seu benefício.

Dois anos depois, em 2024, o INSS permitiu que as mesmas entidades investigadas por fraudes inscrevessem pelo menos 135 mil beneficiários no estado para receber o seguro.

Dados obtidos pelo UOL mostram que, de 2020 a 2025, o INSS assinou acordos com 705 entidades de pesca em todo o país. Nesse período, o número de beneficiários do seguro-defeso chegou a um volume muito maior do que se estima haver pescadores.

Os acordos levaram o pagamento do seguro a sair do controle. Com base em dados do IBGE, fontes do Ministério da Previdência estimam que o número de pescadores artesanais no Brasil circule em torno de 350 mil, um terço dos que recebem hoje o benefício.


Segundo esse cálculo, apenas em 2024, o prejuízo provocado pelas fraudes pode chegar a até R$ 4 bilhões, dois terços dos R$ 5,9 bilhões pagos.

O seguro-defeso é pago para proteger o meio ambiente, compensando os meses em que os trabalhadores são proibidos de pescar determinadas culturas de pescado.

No início de outubro, o Ministério da Pesca e Aquicultura anunciou o cancelamento de 131 mil registros de "pescadores fantasmas". Cerca de 100 mil estavam no Maranhão, estado onde as inscrições dispararam nos últimos anos.

A atuação das entidades é concentrada no Maranhão, Pará e Piauí, estados onde os números de pescadores não batem com a população dos municípios, como mostrou o UOL

Confederação de pesca

As colônias de pescadores, em nível municipal, têm acordo com federações estaduais que, por sua vez, são coligadas em uma confederação nacional. A maior, hoje, é a CBPA (Confederação Brasileira dos Trabalhadores da Pesca e Aquicultura).

A CBPA foi criada em 2020 por Abraão Lincoln Ferreira, um dos principais sindicalistas da pesca, para contornar uma decisão judicial que o proibiu de assumir um cargo no Piauí enquanto respondia a ações criminais.

A acusação a que ele responde é de liderar uma organização criminosa que vendia ilegalmente licenças de pesca industrial, com participação de servidores do Ministério da Pesca. Os fatos ocorreram em 2015, e o processo está em andamento até agora.

Ligado à Força Sindical, Abraão também é investigado pela Polícia Federal pela suspeita de fraudes nos descontos associativos de aposentados por parte da CBPA.

Procurado, ele não respondeu. Em maio, negou ter cometido irregularidades e atribuiu as fraudes no seguro-defeso a terceiros.

Quando a CBPA procurou o INSS para firmar um acordo de cooperação técnica, um parecer da área jurídica do órgão, de janeiro de 2022, destacou as denúncias contra Abraão e recomendou que o instrumento não fosse assinado, já que as denúncias fragilizariam o interesse público que deveria ser o objetivo de um acordo desse tipo.

Edson Akio Yamada, então diretor de benefícios, reconsiderou a decisão e permitiu que o acordo fosse celebrado em novembro de 2022. Yamada é investigado pela PF, suspeito de participação nas fraudes nos descontos através desse e outros ACTs.

O acordo deu legitimidade à CBPA que, embora deixasse às colônias o papel de fazer as inscrições, passou a movimentar milhões em suas contas.

Yamada foi alvo de busca e apreensão da Polícia Federal ontem, como parte da investigação sobre fraudes na conta de aposentados.

Na CBPA, Abrãao Lincoln e Juscelino do Peixe (Solidariedade) —integrante da confederação, aliado do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) e ex-superintendente federal da Pesca em seu estado— também sofreram buscas.

O UOL também procurou Juscelino, mas não obteve resposta.

O pagamento do seguro-defeso bateu recorde de R$ 5,9 bilhões em 2024, e está sob investigação da CGU (Controladoria-Geral da União) por suspeita de fraudes e desvios.

Segundo o governo, entidades são suspeitas de coagir trabalhadores a entregar parte do benefício e de inscrever falsos pescadores para ganhar o seguro, de um salário mínimo por até cinco meses.

Autorização do beneficiário

Em resposta ao UOL, o INSS afirmou que, mesmo com o acordo, é preciso obter a autorização assinada do beneficiário do seguro-defeso para a inscrição.

"É necessário obter autorização expressa do usuário, por meio de Termo de Representação e Autorização de Acesso às Informações Previdenciárias, com indicação específica do requerimento a ser protocolado", disse a autarquia.

Sobre os acordos, afirmou que "têm o objetivo de ampliar o acesso aos benefícios e serviços previdenciários, tais como o seguro-desemprego do pescador artesanal".

"Esses acordos permitem que as entidades parceiras realizem, em favor de seus representados, atividades de orientação, instrução e preparação de requerimentos, os quais são posteriormente analisados pelo INSS, que detém a competência exclusiva para o reconhecimento do direito ao benefício."

OAB no topo do ranking

Os acordos do INSS com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também estão na mira das autoridades, já que permitem que qualquer advogado solicite a inscrição no defeso.

No ano passado, advogados de seccionais da OAB em diferentes estados inscreveram 103 mil pessoas no seguro. Quase todas as solicitações vieram do Maranhão, Piauí e Pará, estados em que estão concretadas as fraudes, segundo fontes ligadas às investigações.


A PF e a CGU encontraram situações em que advogados oferecem para inscrever qualquer pessoa no defeso, seja ela ou não pescador, para ficar com uma parte do dinheiro.

Procurada, a Ordem dos Advogados do Brasil não respondeu.

Em nota, em julho, a CBPA afirmou que não tem poder para cadastrar pescadores no seguro-defeso. "Quem realiza esse processo são as entidades de base —colônias, associações e sindicatos de pescadores— por meio de Acordo de Cooperação Técnica com o INSS, conforme previsto na legislação.".

"Distorcer essa estrutura para atacar a pesca artesanal é irresponsável e desonesto. A CBPA apoia toda fiscalização e repudia qualquer prática irregular."

Por Natália Portinari - Colunista do UOL

Reportagem
Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são publicados somente depois de avaliados por moderador. Aguarde publicação. Agradecemos a sua opinião.