quarta-feira, abril 17, 2024

50 anos do Reservatório Moxotó: águas do Velho Chico - Por: Regina Borges



Regina Borges: Professora, escritora e pesquisadora
50 anos do Reservatório Moxotó: águas do Velho Chico


Lembrar é também uma honra à memória


O destino do Velho Chico é ser mar, mas até a sua chegada na divisa entre Piaçabuçu – AL e Brejo Grande – SE, ele enfrenta uma série de grandes desafios, entre eles estão as barragens, estruturas gigantescas de concreto e, como o próprio nome já sinaliza, tem como propósito barrar o fluxo d’água. Ao entorno desses barramentos são formandos imensos reservatórios, os quais têm como finalidade não apenas ampliar a geração de energia elétrica, mas também garantir a regularização do volume de água.

Foi assim que em 1974, nas proximidades das grandes cachoeiras de Paulo Afonso-BA, o nosso Velho Chico viu, mais uma vez, o seu rito de viagem ser alterado. À época, a CHESF* já tinha construído grandes usinas hidrelétricas - Paulo Afonso (PA) I, PA II, PIII e a do Moxotó (1971), mais tarde renomeada de Apolônio Sales. A PA IV seria concluída somente em 1979. No entanto, diferentemente das primeiras usinas, para as quais foram utilizadas o fluxo natural do rio, à montante da barragem Apolônio Sales foi formado o reservatório Moxotó**, o pioneiro nesse território de Itaparica.

E foi ali que o nosso Velho Chico, impedido de correr livre, foi se alargando, e vorazmente saiu engolindo tudo o que via pela frente. Atingiu 90 km² de terras, tomou novas formas, mudou a paisagem e a vida de milhares de ribeirinhos que viviam às suas margens.

Se por um lado a CHESF trabalhava com muita determinação na execução do plano de desenvolvimento do Nordeste, o qual exigia cada vez mais demanda pela produção de energia elétrica; por outro, o deslocamento compulsório de milhares de ribeirinhos entraria, de forma dolorosa, para a história do sertão nordestino.

E neste ano, ao completar 50 anos da grande inundação em decorrência do enchimento do reservatório Moxotó, faz-se necessário que esse fato seja relembrado, porque conhecer a história é preservar os laços costurados pela memória.

Desse modo, lembrar para nunca esquecer das memórias submersas do povo de Glória, na Bahia, que viu sua cidade e grande parte de sua área rural serem engolidas com toda a sua história, seus patrimônios culturais, seus aluviões, sua biodiversidade. Lembrar para nunca esquecer do povo da margem alagoana; Lembrar para nunca esquecer do povo ribeirinho da margem pernambucana, e de forma especial trago aqui palavras da poeta Júlia Generoza (in memoriam), filha ribeirinha do povoado Umburanas, atualmente território de Jatobá-PE, que com indignação e coragem se utilizou da prosa popular para denunciar o que acontecia em seu território, deixando registrado a saga dos ribeirinhos afetados pelo reservatório Moxotó no seu livro intitulado Romance da Tristeza:
“Prezados caros ouvintes

Vou escrever com coragem

A saída do povo daqui

Por essa tal barragem

O povo se retirando

Muitas mulheres dando ais”

(...)

“Eles de longe se alembrava

De suas queridas ilhas

De vê debaixo d’água

Para não ver mais um dia

Só quem tem dó do povo

É a Virgem Santa Maria”

(...)

“Oh, meu São Sebastião

Tenha de nós compaixão

Não deixe nós sofrer

Lá naquela solidão

Que lhe mando dizer missa

De todo meu coração”

(...)

Na poesia de Júlia Generoza sentimos a dor de um povo desamparado pela lei, que só tiveram a Deus para recorrer. Viveram um tempo de incerteza, sofrimento, com compensações injustas, outras inexistentes, sem falar de tantas outras promessas não cumpridas.

Assim, submersas nas águas do passado ficaram as correntezas do “Rio Velho” como costumam chamar os mais antigos ribeirinhos, testemunhas oculares do tempo, também as procissões fluviais, diversos rituais religiosos e culturais, inclusive que uniam ribeirinhos de Glória e os das bandas de cá de Pernambuco... Relembrar esse fato é também evitar o apagamento da memória, como me disse Pe Félix num outro dia “Povo que perde a sua memória deixa de ser povo”.

Para tanto, nesse ano de recordação, se olhamos para a energia, filha do Velho Chico, e reconhecemos a sua importância ao desenvolvimento do nordeste e do país, também é igualmente necessário que relembremos das milhares de vidas ribeirinhas sacrificadas em nome desse progresso, o qual, lamentavelmente, até a presente data ainda não chegou para muitos desses ribeirinhos e seus descendentes.

Por fim, reafirmar que foi ali no chão das novas terras, onde refincariam as suas raízes, que os ribeirinhos atingidos pelo Moxotó plantaram as primeiras sementes de luta, as quais eclodiriam décadas mais tarde, durante a construção da barragem de Itaparica (1979-1988) com o grito de justiça “Terra por terra, casa por casa”.

Lembrar, lembrar, lembrar para nunca esquecer...

Regina Borges

Jatobá-PE, verão, 2024

*Companhia Hidrelétrica do São Francisco, criada pelo decreto-lei nº 8.031, de 03 de outubro de 1945 na gestão do então Presidente Getúlio Vargas.

**Moxotó é um rio intermitente, que tem seu nascedouro na cidade de Sertânia-PE e após percorrer 226 km deságua no Rio São Francisco, entre os municípios de Jatobá-PE, Pariconha e Delmiro Gouveia-AL, formando o grande lago/reservatório Moxotó.


Por: Regina Borges

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