Pôr-de-sol sobre o ocaso de Petrolândia |
De pé, sobre um soberbo pedestal, eu contemplo o São Francisco. Estou na margem pernambucana, enquanto, do outro lado do rio, nos terrenos cultivados de Santo Antônio da Glória, vejo se aproximar uma boiada, para atravessá-lo silenciosamente, a nado, como já se fazia na época em que o padre Martinho de Nantes andava pelos sertões.
A Bahia vista do cais de Petrolândia |
Subi mais de uma vez, em companhia de meus filhos e de pessoas amigas, até o alto desta sólida ruína, emoldurando o cais de um porto fantasioso, de onde crianças se lançam, para mergulhar no rio.
Às minhas costas, a cidade de Petrolândia, antigo bebedouro de Jatobá, ex-Itaparica, durante certa época Jatobá de Tacaratu, que se preparava ao mesmo tempo para comemorar o primeiro centenário como cidade e se imolar logo depois ao progresso, conforme fora programado por administradores e engenheiros, ávidos em obter do São Francisco maior quantidade de energia hidrelétrica, ainda que à custa do afundamento de muitos milhares de hectares da terra sertaneja. Engenheiros e governantes com a mesma visão pragmática dos que planejaram e autorizaram a extinção de Sete Quedas, no rio Paraná, para construção da Usina de Itaipu.
A luta pelo aproveitamento do rio dos currais vem de muito longe, da época em que o imperador do Brasil, D. Pedro II, se deslocou da corte, no Rio de Janeiro, para uma viagem aventurosa até Paulo Afonso. Isto aconteceu quase um século antes da inauguração da grande usina hidrelétrica, pelo presidente Café Filho.
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Paulo Afonso: homenagem à visita de D. Pedro II |
Eu havia folheado, com inegável prazer, a edição original do Diário de Viagem de Sua Majestade, escrito quarenta anos depois de haver Martius, em viagem custeada pelo tesouro nacional, registrado que as notícias sobre a altura da cachoeira variavam entre 16 e 50 pés de altura e que o estrondo de sua queda podia ser percebido com várias horas de antecedência da chegada, enquanto a neblina que se elevava acima dessa maravilha da natureza era vista de uma distância correspondente a seis léguas.
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A visão da cachoeira também encheu de perplexidade outros visitantes ilustres, como Avé-Lallamant, europeu grandiloquente, o mesmo que comparou o Recife, em 1860, a “uma Veneza, sem dúvida, pudesse o Brasil nalguma coisa comparar-se à Itália”. Depois de falar dos vários braços do rio “que se despencam duma altura de 230 pés”, escreveu sobre o espetáculo observado, para ele comparável ao de Niágara, na América do Norte, que, entretando, confessa não haver visitado:
Cachoeira de Paulo Afonso (BA) |
“A verdadeira cachoeira descreve meia curva; a princípio, a massa de água precipita-se verticalmente, mas depois é desviada a meia profundidade, um pouco para o norte do alcantilado canal rochoso pelo qual se despenca. Aí exatamente a meio caminho despenca outra queda sobre ela. Baralham-se e pulverizam-se completamente. Não se reconhece mais a massa compacta de água: tudo é espuma, vapor, espessas nuvens de vaporização”.
A série de descrições gongóricas seria, afinal, culminada com o poema famoso de Castro Alves, exatamente chamado de Espumas Flutuantes. Euclides da Cunha criticou aqueles que, como o poeta baiano, exaltam a grandiosidade da cachoeira sem registrar a importância do seu potencial econômico, na geração de energia útil.
Esta geração de energia somente se deu a partir de 1914, por iniciativa do cearense-pernambucano Delmiro Gouveia, através de um projeto de pequeno porte (1.500 HP) que chegou a movimentar a fábrica de linhas da cidade alagoana de Pedra. Naquele ano – diz, como ufanismo, o poeta Mauro Mota – era “a melhor luz elétrica do Brasil”. Tal pioneirismo, porém, que contrariava os interesses poderosos de capitalistas ingleses, então únicos fabricantes de linhas de coser da América do Sul, foi interrompido com o assassinato do empresário inovador, na noite de 10 de outubro de 1917.
Usina hidrelétrica em Petrolândia, desativada em 1955 |
Nem o projeto de iniciativa privada, nem o outro, encampado pelo governo à época de Getúlio Vargas, pretendeu represar o São Francisco. Nem também, o da usina de Paulo Afonso I, cuja inauguração assisti, a 15 de janeiro de 1955, após descer 80 metros pelo túnel rasgado na rocha viva.
A ideia de barragens sucessivas é antiga, de 1925, tendo sido protelada durante décadas. O projeto de Itaparica, em sua atual concepção, só foi definido entre minha primeira e segunda viagens à área, prevendo, entre outras, a destruição dos campos de Glória e da cidade de Petrolândia, onde agora me encontro.
Tal inundação, de resto – teria alguém acaso, argumentado – iria atingir os cem anos de uma cidade em que nada, rigorosamente nada, fora jamais definitivo: a começar do próprio nome, artificiosa homenagem ao imperador, por haver autorizado a construção de um porto fluvial alguns metros adiante da estrada de ferro, certamente o único ancoradouro do universo fechado de ambos os lados à navegação por seguidos obstáculos de pedra.
Na minha segunda visita a este lugar, eu sentira um silêncio tão grande sobre o drama que se aproximava, que invoquei Gabriel Garcia Marques e o seu povoado de Macondo, “a inércia das pessoas contrastando com a voracidade com que se consumiam sem piedades as lembranças”, nos Cem Anos de Solidão. Seis meses depois, parece que uma das enchentes do São Francisco, mesmo sem atingir partes importantes da cidade, acordou a população do torpor em que se encontrava. Já não sendo mais possível fazer de conta que a água nem existe, todo mundo passou a falar da barragem, seja para lamentar o próximo fim de Petrolândia, seja para reclamar dos sucessivos adiamentos na construção da represa.
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Assim, vêm-se juntar na minha mente a ferrovia desativada e os canos de irrigação em abandono, ao antigo porto em que jamais acostou um único navio, para formar o perfil monumental da falta de continuidade administrativa e de planejamento adequado nas grandes realizações anunciadas como necessárias ao homem brasileiro.
crianças se atiram do cais ao rio São Francisco |
Excerto do livro "O Sumidouro do São Francisco: subterrâneos da Cultura Brasileira", de Abdias Moura. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 2a. edição. 1993. pág. 363 a 367
Da Redação do Blog de Assis Ramalho