segunda-feira, março 06, 2023

Em operação conjunta com gabinete de Bolsonaro, chefe da Receita mandou liberar joias confiscadas

Julio Cesar Vieira Gomes, chefe da Receita no governo Bolsonaro. — Foto: Reprodução

"Solicito atender”.

Assim, assertivo e por escrito, o então chefe da Receita Federal no Brasil, Julio Cesar Vieira Gomes, deu a ordem para que a Superintendência da Receita em São Paulo passasse por cima de protocolos oficiais e entregasse, para um militar enviado às pressas pelo gabinete pessoal do então presidente Jair Bolsonaro (PL), as joias retidas com a comitiva presidencial que voltava da Arábia Saudita em outubro de 2021.

Tudo isso no apagar das luzes de 2022, fim da gestão Bolsonaro.

A determinação, sem rodeios e pelo e-mail oficial do órgão, faz parte de uma frenética troca de mensagens entre diversas autoridades brasileiras e envolve diretamente o gabinete pessoal do ex-presidente.

Essa cartada final de esforços para tirar as joias dos cofres da Receita no Aeroporto Internacional de Guarulhos começa com um ofício assinado pelo braço-direito de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do então chefe do Executivo (leia, ao final deste post, o que diz o documento).

Na hora do almoço de 28 de dezembro, na última quarta-feira da última semana da gestão passada, Cid assina uma correspondência direcionada ao comandante da Receita, o auditor Júlio Gomes.

No entorno de Bolsonaro, a versão de assessores ouvidos pelo blog é de que o ofício teria sido combinado previamente com Gomes, que estava em contato direto com Bolsonaro nos últimos dias de dezembro exatamente para discutirem o resgate das joias que estavam no aeroporto.
Aliados de Bolsonaro disseram ao blog que o então presidente, ao ser alertado pelo chefe da Receita de que era preciso resgatar o que ainda estava em Guarulhos, "ficou pilhado" pois, nas palavras de um ex-assessor da cozinha do Planalto, não queria "deixar nada para a gestão Lula'' - o que não faz sentido, já que, se as joias fossem para União (uma das versões apresentadas por bolsonaristas para minimizar o escândalo), seriam patrimônio do Estado e não de um presidente A ou B.

Foi depois dessa costura, segundo esses assessores, que Cid fez o ofício enviado à Receita.


Joias dadas pelo governo da Arábia Saudita e que foram apreendidas pela Receita Federal. — Foto: Wilton Júnior/ Estadão

O ofício do gabinete pessoal do presidente

No topo do ofício, estão o brasão da República e os dizeres: gabinete pessoal do presidente da República.

Na mensagem, o ajudante de ordens pede a “incorporação dos bens abaixo descritos a este órgão da União”, sem explicar claramente quem seria o destinatário final dos presentes.

Mas essa imprecisão pouco importaria ali: Cid não teria sequer atribuição legal de fazer o pedido, que caberia ao gabinete de Documentação Histórica, avaliam técnicos da Receita.

O documento, ainda hoje classificado como inábil e irregular, seguiu seu caminho pelo alto escalão do governo Bolsonaro.

O texto terminava com um aviso claro: “autorizo que os bens sejam retirados pelo representante Jairo Moreira da Silva”, primeiro-tenente da Marinha que, no dia seguinte (29 de outubro), embarcou em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para cumprir a missão.

O e-mail do chefe da Receita

O ofício virou um anexo em um e-email enviado por um assessor do coronel Cid, o tenente Cleiton Henrique Holszchuk. O destinatário: o chefe da Receita Federal no Brasil, o auditor Julio Gomes.

O efeito foi imediato. Cerca de uma hora depois, Gomes, comandante da Receita, já dava ordens para seu subordinado, o então superintendente do órgão em São Paulo José Roberto Mazarin.

Julio diz: “Boa Tarde, Mazarin. Solicito Atender. Peço também encaminhar ao delegado ALF (alfândega) Guarulhos. Abraços”

Fontes ouvidas afirmam que o e-mail é, até agora, a principal digital deixada pelo então secretário da Receita no episódio. E, de tão excêntrica, parece ter chamado a atenção da equipe da Receita envolvida na ocasião em São Paulo.

A resistência dos servidores da Receita

Da leitura das mensagens, pode-se entender que os servidores do órgão em São Paulo identificaram a movimentação estranha e iniciaram, então, um longo debate por escrito sobre as regras de um trabalho como aquele. Na prática, ganharam tempo, talvez para avaliar se, com a virada de governo, tamanho interesse repentino pelo patrimônio da União seguiria firme.

No eixo da discussão - que envolveu servidores como o delegado da Alfândega do Aeroporto de Guarulhos, Mario de Marco - estava a confecção do documento chamado Ato de Destinação de Mercadoria (ADM), que serve para registrar a transferência de um bem como aquele de certa origem para outro destino.

Gomes, o chefe da Receita, queria avocar para ele a assinatura do ato. Mas os servidores de São Paulo argumentavam que seria necessário um trâmite para isso ser feito. Com um empecilho: naquela semana, a pessoa mais preparada para realizar todo o procedimento estava longe dali, no aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP).

As discussões foram tão longas, com tantas fundamentações teóricas e práticas, que se estenderam até o dia seguinte.

Mesmo com a chegada do avião da FAB e de tentativas frustradas e novas pressões de Gomes - que, por telefone, tentou falar com o servidor da Receita no aeroporto, mas não conseguiu -, o nó não foi desfeito. Até o último dia útil da gestão Bolsonaro as conversas seguiram sem desfecho.

Para quem está começando a investigar o caso, a dificuldade para liberar as joias mostra duas coisas importantes.

A primeira é que tanto o braço direito de Bolsonaro como o chefe da Receita agiram sem estarem calçados no que faziam - a prova é que não havia amparo legal e documental para tirar os presentes dos cofres da Receita, onde seguem guardados.

A segunda é que a burocracia, e o faro dos servidores de São Paulo, foram determinantes para impedir que as joias fossem parar irregularmente no gabinete pessoal do agora ex-presidente.

LEIA, ABAIXO, O QUE DIZ O OFÍCIO DO GABINETE PESSOAL DO PRESIDENTE

Presidência da República,

Gabinete pessoal do presidente da República, Ajudância de Ordens do presidente da República, ofício 736/2022.

Brasília, 28 de dezembro de 2022.

Ao Sr. Julio César Vieira Gomes, Secretário Especial da Receita.

Assunto: incorporação de bens apreendidos DL 1455 de 07/04/76 e portaria Receita número 200 de 18/07/2022.

Sr. secretário,

Trata-se de pedido para incorporação dos bens abaixo descritos a este órgão da União.

Descrição dos bens:

Joias, conjunto de joias, colar, par de brincos, anel e relógio de pulso conforme certificado de autenticidade Chopard.

B- Outros itens: Miniatura de um cavalo ornamental com pedestal com avarias.

Observação: A descrição dos itens acima reproduz o constante no termo de retenção 081760021031370TRB01 de 26/10/2021, objeto do requerido por meio deste ofício.

3) Origem dos bens: os bens acima descritos foram ofertados ao presidente da República pelo Reino Unido da Arábia Saudita na cerimônia de lançamento da iniciativa Oriente Médio Verde, ocorrida no período de 20 a 26 de outubro de 20201 conforme se demonstra pelos documentos anexos.

4) Ressalta-se que, conforme ofício 578/2021 GM-MME de 28 de outubro de 2021 enviada a este órgão, o Sr. ministro de Minas e Energia estava representando o Sr. Presidente da República na cerimônia diplomática por ocasião do regresso ao Brasil, e foram retidos na alfândega do Aeroporto de Guarulhos, São Paulo.

Foram meses para obter os documentos comprobatórios tal como exigido pela nota executiva da Receita Federal, ora anexados a este ofício, bem como desde já, autorizo que os bens sejam retirados pelo representante:

Nome: Jairo Moreira da Silva

Telefone:

Respeitosamente Mauro Cesar Rosa, Cid chefe da Ajudância de Ordens do Presidente da República, 28/12, 12:32.

Por Arthur Guimarães e Andréia Sadi — São Paulo

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