sexta-feira, outubro 31, 2014

'O que resta é o cheirinho de peixe nas redes', diz pescador de Pernambuco sobre a seca

O pescador Arlindo Ferreira no local em que havia a barragem onde pescava (Foto: Jael Soares/G1)

Das casinhas de barro à beira da Barragem da Ingazeira, os pescadores encaram todos os dias a realidade que desejam esquecer. O reservatório está vazio há mais de dois anos, o que prejudica a vida dos 16 mil habitantes do município de Venturosa. Com 67 anos e 15 filhos – apenas seis deles sobreviventes –, Arlindo Ferreira pesca há décadas e não se recorda de uma seca tão rigorosa.

Ele era acostumado a pescar de 10 kg a 15 kg diariamente e a faturar até dois salários ao mês em épocas de fartura. "Em 2009 e 2010, tinha muito peixe. Em 2011, era bem pouquinho o peixe. Em 2012, morreu tudo". Depois que a barragem secou, o que "resta hoje é o cheirinho de peixe nas redes", afirma. A família sobrevive basicamente do Bolsa Família e da aposentadoria dele.

Maria Luzinete da Conceição perdeu as contas da idade, mas sabe o que passa. A saudade do trabalho ela sente nas mãos que seguravam os peixes para tratá-los. E queria esquecer um dos dias mais tristes que viveu em mais de 60 anos.

Diante das necessidades, os idosos mais persistentes e alguns jovens seguem em busca de outras fontes na região, porém, o resultado é insuficiente – os peixes são pequenos, e o lucro não compensa o esforço do deslocamento e das jogadas de rede.

Venturosa é localizada no Agreste Meridional, região onde todas as localidades foram afetadas. O município enfrenta hoje queda da produção de leite e reservatórios poluídos por lixo e esgotos, além do esvaziamento da barragem e a morte dos peixes.

A poucos minutos das casas de barro vivem muitos pescadores em residências de alvenaria. O abastecimento das duas localidades, bem como de outras partes de Venturosa, é feito por caminhões-pipa dos governos estadual e federal, além dos comprados de particulares. No entanto, não seriam o bastante. Algumas famílias bem mais carentes ainda buscam um líquido sujo e salobro que sobrou em poças na Ingazeira para lavar utensílios.

"Aquela água está muito verde, não dá nem para lavar, mas eles não podem comprar água direto porque o dinheiro não dá. O Chapéu de Palha [programa do estado] acabou, era só por quatro meses. Muitos pescadores aqui não têm do que viver, vivem do Bolsa Família e você sabe que não sai muito. Olhe, eu pago aluguel, pago água, pago leite para a minha filha, pago luz, fora a feira. E meu marido ainda faz bico [emprego temporário]", conta Eliane Bezerra, de 27 anos, filha de pescador.

Representantes da associação dos pescadores informam que solicitaram várias vezes cestas básicas ao Ministério da Pesca e Aquicultura, mas não foram atendidos. Até a publicação desta reportagem, a assessoria da pasta não havia se pronunciado sobre o assunto.

Mais setores da economia local foram prejudicados na região. Quando começou a estiagem, rebanhos conseguiram persistir se alimentando de palmas (cactáceo que serve de ração). Mas a cochonilha, uma praga, atacou plantações em Pernambuco. Uma das criações atingidas foi a de Guy Tenório, de 53 anos, agricultor que mora vizinho a Barragem de Ingazeira, em terra pertencente a Pedra, município que enfrenta situação crítica por água há dez meses. À espera de dias melhores, ele procurou maneiras de não deixar os animais morrerem e, como a ajuda não caiu dos céus, ele buscou pelas terrenas.

Antes da seca, o agricultor possuía mais de 40 vacas leiteiras, fora bois e novilhos, e diz que produzia 300 litros de leite ao dia. Em 2011, a produção caiu para 200 litros diários e veio a praga. A solução foi levar os animais para o pasto de Batalha, em Alagoas. Dois trabalhadores do sítio ficaram desempregados. A palma de lá, entretanto, ficou cara, e o lucro não acompanhava o empenho.

"Acabei vendendo 19 cabeças lá em Alagoas pela metade do preço, sem contar os bois. Tive um prejuízo de, no mínimo, R$ 100 mil", lamenta Tenório. Ao voltar para Pernambuco, ele decidiu investir em um caminhão-pipa, mas a compra também deu prejuízo porque "ia buscar água em Alagoinha [cidade em Pernambuco], ficava cara, as pessoas não podiam pagar e havia despesa com combustível e empregados".

Para sustentar a casa, a esposa e os netos, Guy Tenório conta atualmente com ajuda de amigos. No curral, há sete vacas emprestadas para que ele aproveite o leite. Como a ração é escassa, elas apenas produzem 80 litros diários. A água utilizada na higiene de casa e, para o gado, é retirada de um poço cavado no Rio Ipanema, próximo ao sítio onde mora. O córrego está seco – o que não havia acontecido nem na seca de 1970, segundo o agricultor.

A situação crítica de Pedra fez o número de bovinos cair de 42 mil, em 2012, para 39 mil em 2014. Já a produção leiteira definhou de 24 mil para 20 mil litros diários, conforme consta na Agência de Defesa e Fiscalização Agropecuária de Pernambuco (Adagro). "Trabalho desde os 5 anos de idade, e essa seca é uma das piores coisas que já vi em toda a minha vida".

Já a água que a família bebe é trazida semanalmente em caminhões-pipa pelo poder público. O mesmo ocorre com os agricultores de Venturosa, onde os problemas são semelhantes. E os prejuízos também: o rebanho de bovinos caiu de 21,1 mil, em 2012, para 19,1 mil em 2014, e a produção leiteira de 93 mil litros ao dia para 87,6 mil, também segundo a Adagro.

Estes dois municípios estavam entre os maiores produtores de leite e gado da reAos 58 anos, José Dilson Cavalcanti viu seis dos 18 filhos partirem para o Sudeste. Eles já planejam voltar, por causa da seca em São Paulo, mas a situação em Pernambuco é crítica. Dos 185 municípios, 123 estão em emergência devido à estiagem, segundo o Ministério da Integração.

Cavalcanti é um dos representantes da associação de pescadores e conta que a Barragem de Ingazeira já seria poluída por dejetos da cidade, mesmo quando havia pleno funcionamento. Ele acredita que faltou melhor gerência dos recursos. "A água foi muito extraviada com os plantios. E a Compesa [Companhia Pernambucana de Saneamento] destruiu muita água também e deveria pagar pelo menos R$ 5 mil ou R$ 10 mil a cada um para saber o quanto custa tirar o pão", avaliou.

Ainda de acordo com Cavalcanti, não houve fiscalização constante para coibir furtos de água nem para impedir o despejo de dejetos, tampouco a Compesa fez racionamento do abastecimento de água para garantir a pesca, que tem 24 anos de tradição.

A assessoria de imprensa da companhia afirma que houve de fato reduções na distribuição de água e que verifica ligações clandestinas desde que os moradores denunciem. Sobre o esgoto, informou que "dejetos não caem diretamente na barragem". Outros reservatórios e mananciais do município estão igualmente prejudicados pelo lixo ou pela água suja vindos das casas. A prefeitura reconhece este problema, mas reforça que existe um projeto da Compesa para sanear 100% da cidade e até tentar reverter a poluição.

"Para acudir a situação, seria necessário um projeto para beneficiar a agricultura familiar, incluindo a pesca", sugere José Dilson. Ele diz que, se não houver ajuda dos governos, vai acionar o Ministério Público.

Seca histórica
A falta de perspectiva de chuvas torna a seca atual a pior dos últimos 50 anos na região. O ano de 2012 teve chuvas 80% abaixo do esperado. Há 21 anos e 78 anos, também houve registros de menos chuvas, todavia, a seca atual está se prolongando além do esperado. Em 2013, as chuvas ficaram 60% abaixo do ideal, e as de 2014 estão até o momento 30% abaixo da média. A estiagem iniciada após o período chuvoso de 2011 é, portanto, semelhante à dos anos 1960 no semiárido do estado, segundo a Agência Pernambucana de Águas e Climas (Apac).

Os moradores desta região anseiam por medidas que antevejam os problemas e reclamam que, por enquanto, as ações foram de caráter paliativo. A Secretaria de Agricultura de Venturosa afirma que estão em andamento a abertura de poços, construção e limpeza de reservatórios para receber as chuvas que vierem.

Além disso, estariam sendo realizadas obras de adutoras, com apoio estadual e federal. A prefeitura, assim como o Exército e o Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), ainda envia caminhões-pipa para instituições públicas e moradores. E a Compesa dispõe de 15 chafarizes pelas zonas urbana e rural de Venturosa.

Como o município está na lista daquele em situação de emergência, existe a transferência obrigatória de recursos ou há possibilidade de solicitá-los, de acordo com o Ministério da Integração. O secretário municipal de Agricultura, José Jonas Pacheco, afirma não ter conhecimento sobre a vinda deste tipo de verbas. "A produção [rural] já esteve em queda, agora está se recuperando; a situação mais crítica de hoje é por causa da falta de água", afirma.

Jael Soares
Do G1 Caruaru, em Venturosa e Pedra

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